O sol ainda não tinha chegado no dia 23 de novembro quando os moradores da comunidade DUBAI foram acordados de sobressalto com gritos para desocuparem seus humildes casebres. No primeiro momento imaginaram tratar-se das "batidas policiais" tão comuns em comunidades pobres que ora por outra acontecem. Mas a apreensão logo se transformou em medo, depois em terror, estampado no rosto de idosos, adultos e de crianças quando perceberam que não se tratava de uma simples "batida" e sim de uma força-tarefa envolvendo 600 policiais, cães farejadores, retroescavadeiras, caçambas, aparato este utilizado para cumprimento de uma ordem de despejo, suspensa pelo STF, embora que tardiamente, sem qualquer individualização de condutas, jogando no olho da rua mais de 400 famílias, integrantes de uma coletividade que já vivia em precárias habitações, desprovida das condições básicas de saúde pública.
Aturdidos, mas ainda com esperanças que seriam relocados para uma outra área, essa ilusão dissolveu-se quando foram despejados e abandonados à própria sorte em abrigos improvisados, jogados em ginásios e salas de aulas divididas entre famílias, com demarcações feitas por móveis. Os ambientes em que foram literalmente descartados não oferecem o mínimo de condições de habitabilidade, sendo obrigados a conviverem com a falta d'água potável, escassez de alimentação, ausência mínima de privacidade, com situações extremas de 8 pessoas se amontoando sobre o mesmo colchão e em meio a um surto de doenças infecciosas causadas por microrganismos como vírus, bactérias, protozoários e fungos, afetando principalmente as crianças, sem mencionar o fato de estar todos aglomerados e sem nenhuma assistência que possibilite a testagem para detecção da Covid-19.
O relato dos moradores impressiona pela absoluta falta de humanidade, sensibilidade e dignidade com que agiram os representantes do poder público: "A gente não é traficante não, somos cidadão de bem, só somos pobres. Cadê o direito de pegar o pouco que tínhamos?", questionou Dona Maria. "Fizemos empréstimo para comprar lona, telha e destruíram tudo", disse Adeilson.
Na ânsia de dar cumprimento à ordem judicial - embora pela índole do magistrado tenho convicção da sua indução ao erro - não respeitaram sequer os animais de estimação dos moradores: "Mataram meu cachorro com um tiro só porque tava latindo para a polícia. O meu cachorro só queria proteger a família", relatou Seu Antônio. E não foi apenas o cachorro de Seu Antônio que morreu durante o despejo, cabras, galinhas, pintinhos e outros cães foram mortos por bala, tiveram seus corpos esmagados por retroescavadeiras, ou foram soterrados, como o que aconteceu com uma gata e seus filhotes.
A sociedade não pode fechar os olhos para a gravidade do fato ocorrido na comunidade DUBAI. É preciso que a mobilização se fortaleça para urgentemente os poderes públicos, municipal e estadual, encontrarem uma solução digna relocando estas famílias para o local que não poderiam ter saído da forma como foram expulsas. Ou isso ou uma outra comunidade que lhe ofereça as condições mínimas de habitabilidade. É o preço que o presente cobra desses homens de hoje pela luz do amanhã, se quiserem ter paz em suas consciências.
Por outro norte é preciso que os agentes responsáveis por essa operação desastrosa e desumana sejam responsabilizados pelos seus atos irresponsáveis, como recado para não se permitir que outras situações do gênero se repitam por absoluto interesse especulativo do setor da construção civil. Zelar pelo patrimônio público é um dever do poder público, porém o princípio da preservação da dignidade da pessoa humana é um bem jurídico imponderável em situações fáticas como estas, em relevo, por estarmos em plena pandemia responsável por dizimar até o presente as vidas de mais de 616 mil cidadãos brasileiros.
Pautar-se pela garantia do respeito à dignidade humana para com os que vivem em situações de vulnerabilidade social não é uma necessidade hodierna, mas um dever imperativo que toda e qualquer sociedade minimamente humanitária precisa se nortear. Estas famílias não podem ser invisíveis aos nossos olhos. Precisam não apenas ser vistas, mas representar e incorporar a resistência; a obstinação, a tenacidade, a perseverança e a persistência na luta por "um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres", na esteira do que defendeu Rosa Luxemburgo, uma das mulheres revolucionárias que morreu lutando por justiça social.
*Gilberto Carneiro da Gama, advogado, ex Procurador Geral do Estado da Paraíba
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Heloisa de Sousa