Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa
Da bondade da pessoa ruim
Deus me governe e guarde, ilumine e zele assim
Chico César
“Deus e o Diabo na terra do Sol”, filme do brasileiro Glauber Rocha, traz na figura do cangaço, a desmistificação do bandido. Diante de tamanha miséria, violência, seca e fome, resultado do latifúndio dos coronéis, emergem figuras como Lampião, Dadá, Corisco e Antônio Silvino, que também foram resgatadas por nosso grande músico Chico Science, “... Viva Lampião sua imagem e semelhança, eu tenha certeza eles também sambaram um dia... banditismo por necessidade, banditismo por pura maldade, banditismo por uma questão de classe.”
Em todos os filmes clássicos que buscam a construção do mito do herói, temos a saga de um sujeito, que normalmente passa por muitas provações, chegando até a ser desacreditado, passando como fraco e impotente, mas que, no último minuto, consegue derrotar seu arquirrival, o vilão. Esse por sua vez, tem quase por determinação do destino, ou obsessão, cometer atos contra a sociedade por pura maldade, mas ao final, o mocinho, estando ao lado de seu grande amor, vive a aprovação geral de jampacity, trazendo uma grande lição de moral, o crime não compensa.
Podemos nos perguntar: de onde vem a palavra vilão, usada para definir todos aqueles que carregam a índole para práticas maléficas? O chamado vilão é o morador da vila, da favela, é o favelado, o do morro, o da quebrada, o da periferia, o da margem, o marginal. As palavras não estão fora do lugar, estão ali mesmo para dar sentido social, político, econômico e cultural. Associar as pessoas que moram em vilas a bandidos perigosos, que devem ser combatidos, quando não exterminados do convívio social, é algo construído socialmente, que tenta através do discurso preconceituoso, legitimar uma visão de mundo em que os mais pobres, os moradores da periferia, têm uma tendência ao crime, ou mesmo que essas áreas seriam criadouros naturais de gente desonesta. Não nos enganemos, há um cálculo em tudo isso.
A história é contada, a partir da visão dos vencedores. Escolhidas as palavras, também a partir dessa perspectiva, é contada a história de “grandes” impérios que “expandiram” seus domínios sobre os povos em busca de honra, glória, e sobretudo pilhagem. É o que podemos ver nas famosas guerras do império romano contra os povos bárbaros, os que mais resistiram à invasão de um exército estrangeiro, que vinha para saquear e escravizar. Foram os povos vândalos, que demonstraram disposição a não entregar um único casebre para os verdadeiros invasores, usando de toda força e resposta violenta, foram taxados de bárbaros, cunhando assim a expressão vandalismo e, nesse caso vândalos, os que sem a força do direito (romano), resistiam pelo direito à força. Na comunidade Dubai, em Joao Pessoa, prevaleceu o Direito da força ao invés da força do Direito.
É preciso relembrarmos que esse mesmo Império Romano sentenciava seus opositores as piores penas de morte: a crucificação, destinados aos piores criminosos, pela qual o próprio Jesus Cristo, fora condenado ao lado de dois ladrões. Mesmo diante da sua dor, a denúncia daquele regime que o transformava num vilão de Nazaré, anunciava a esperança dos oprimido e cativos: “ainda hoje estarás comigo na MORADA do meu pai”. Ao que tudo indica, os que se dizem cristãos pareciam estar lendo ou vivendo outro evangelho.
Como vimos no despejo ilegal da comunidade de Dubai, em 23 de novembro, com raras exceções, a mídia tradicional, seguido de toda sorte blogs, portais, sítios e outros meios eletrônicos fez coro como discurso oficial de que se tratava de um antro de invasores de terra, traficantes e desmatadores, que cometeram crime ambiental, instalando-se de forma ilegal numa área pública, segundo declaração do próprio mocinho Prefeito Cícero Lucena (PP), “estavam grilando terras”, além de outras práticas ilícitas no local.
Duas coisas nos chamam a atenção nessa fala de Cícero. A primeira, é que como de conhecimento não só da comunidade de Dubai, mas acessível ao público, vídeos do período eleitoral, mostravam que, o então candidato, esteve em Dubai fazendo campanha e que, como relatado por moradores no recente protesto, deu a garantias de que o povo ficaria no local. À época, Cícero Lucena doou fiação, canos, lonas e outros materiais para a ocupação. A outra, é que Cicero, como bom construtor, também não colocou a palavra grileiro de forma inocente. Veja porquê não cabe nesse contexto. A palavra grileiro, vem de grilagem, que por sua vez era uma prática antiga em falsificar propriedade de documentos de terras, usando um grilo numa caixa ou baú, junto com o suposto título de propriedade e muita merda. Isso mesmo. Muita merda de grilo, que amarelava o papel fazendo parecer envelhecido para assim aplicar o golpe da grilagem.
Hoje, as técnicas de grilagem dispensam grilinhos falantes, têm ramificações escusas que garantem a fé pública das certidões falsificadas. Pelo que se sabe não estávamos diante de prática de grilagem, mas de uma disputa pela posse da área, na qual aqueles que a imprensa fez questão de chamar de invasores, são na verdade posseiros, que ocuparam a área com fins de moradia, o que caracteriza uma disputa litigiosa da posse.
Além da versão CONSTRUÍDA PARA CRIMINALIZAR AS FAMÍLAIS DE DUBAI, e “tornar a operação um sucesso”, não podemos negar o papel nocivo que, cotidianamente, esse tipo de prática, de criminalização da pobreza, da favela, da periferia vem sendo incentivado às vezes de forma velada, ou na maioria das vezes, nos programas policiais de forma aberta, intencional e escrachada, o que para alguns pode causar risos, para outros, é o mais puro exercício de perversão em que coloca as pessoas em condição permanente de bandidos, com nome, endereço (periferia) e CPF( que devem ser cancelados). Já os chamados escândalos envolvendo engravatados e/ou vendedores de êxtase em áreas nobres, têm seus nomes preservados.
Os chamados bandidos assim receberam esse nome, historicamente, por andarem em bando, como os ciganos que por viverem em bandos são notadamente discriminados. Ao povo, que se movimenta, que caminha, veio a pecha de turba: multidão em movimento ou desordem potencialmente violenta, por isso a palavra per- turba, caminho da turbação, da bagunça.
A história do nome de Dubai
Podemos dizer que tudo começa com uma ocupação, que mais tarde se torna o conjunto habitacional Patrícia Tomaz. Inicialmente, esse conjunto é batizado como Iraque por um desses comentaristas policiais, que supostamente teria associado o local ao Iraque, numa cena em que mostra uma criança, no local, segurando um fuzil. Depois disso, outra área passa a ser chamada de Irã e, outra, de Afeganistão. Foi um passo ao próprio reconhecimento e uso de uma identidade que contraditoriamente macula e fortalece os moradores daquele lugar invisível, mas que volta e meia se torna notícia, fazendo-os emergirem diante da invisibilidade, esquecimento e ausência do Estado, que por aqueles lados costuma aparecer, a cada dois anos, para tomar seu pouco café, nos barracos de lona, prometendo mundos e fundos.
Certamente o nome Dubai é uma tentativa de síntese, da possiblidade de quebrar as duas visões que se cruzam, de um oriente médio, que para além da guerra, deserto e pobreza se tem uma força material, um desejo de prosperidade no meio do nada, de um lugar que não seja associado às terras arrasadas pelas guerras, mas a promessa da terra prometida que jorraria leite e mel, na qual a presença e influência da teologia neopentecostal, da prosperidade, inicia a história da comunidade de Dubai pela fala: “eu tive uma visão mandada por Deus”.
O fato que não nos deixa tranquilo, na passagem desse dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, é que Dubai é o laboratório a céu aberto da força do Estado com seu aparato material militar, articulado com a mídia tradicional e os interesses privados do capital especulativo, na região sul da cidade de João Pessoa, que deve ser combatida, tanto no sentido real, por isso tamanha operação de guerra, ainda que se cometa um crime despejando em pandemia, descumprindo decisões do STF na ADPF 828, art. 2º, incisos I,II e III da lei federal 14.216/2021 em vigor, recomendações da corregedoria do Próprio Tribunal de Justiça da Paraíba, além da lei estadual 11.614-2009, nos moldes da convenção 169 da OIT, da lei federal 8.629/1993 e decretos federais 4.887/2003, 6.040/2007 que fundamentaram a criação da comissão estadual de prevenção a violência no campo e na cidade, responsável por mediar conflitos fundiários.
Há um objetivo evidente, continuar construindo a narrativa da criminalização da pobreza, da luta, das periferias, transformar toda possibilidade de reação popular, organização popular de massas, em caso de polícia, em hordas de vilões que precisam ser contidos como exemplo, e eliminados como experiência.
Por acaso, ouvimos alguma medida efetiva ou anunciada no sentido de políticas sociais para jovens e crianças na região? Algum anúncio de implementação de políticas efetivas de emprego, trabalho e renda, ou ainda alguma politica púbica universal que garanta o legitimo direito assegurado pela Constituição e dever do estado: MORADIA DIGNA?
O despejo de Dubai é resultado da criminalização das lutas e da pobreza, em especial, dos negros e de parte de nossa formação social histórica, de mais de 500 anos de escravidão, por isso, que todo camburão continua tendo um pouco de navio negreiro. Também tem sua atualização no ódio de classe, na personificação do governo Bolsonaro, que tentou aprovar projeto de lei 1595/2019, que cria polícia secreta que transforma os movimentos sociais em terroristas.
Estamos diante de uma tentativa de inverter os valores da garantia dos direitos fundamentais, diante do direito à propriedade. Os ditos mocinhos, na calada da noite, cortaram a água e energia de mais de 400 famílias, mataram galinhas, cachorros que latiam, derrubaram casas e sonhos, não permitiram que fosse devidamente registrada a ação com encapuzados, jogaram grávidas, crianças, idosos, homens e mulheres na rua, sem possibilidade de defesa legal, tudo em nome da boa-fé e do Ministério Público Estadual - que deveria ser o guardião e fiscal das leis - mas que descaradamente não só violou as leis, como descumpriu-as. Há de se ter as devidas responsabilizações e reparações por esses atos.
Há uma geografia do medo, gravada em nossos corações, que nos diz que não se deve entrar em tal lugar porque é perigoso. Convidamos todas aquelas e aqueles a conhecer os becos, favelas, ocupações, comunidades e vielas da Paraíba e saber que apesar de tudo há um povo altivo, forte, trabalhador, resistente e feliz.
O momento é de convocação, dos moradores das favelas, sob ameaça de despejos dos grandes projetos que nunca foram consultados, das comunidades esquecidas, dos galpões abandonados e agora ocupados, dos cortiços, dos barracos e dos puxadinhos das áreas sem função social, livrai-nos de todo mal.
Vilões de toda Paraíba e do Brasil uni-vos !!! Lutar não é crime !!!
*Militante da Consulta Popular e da Direção Nacional do Movimentos de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos- MTD
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Heloisa de Sousa