Paraíba

Coluna

A luta pela moradia e os despejos

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Despejo de Dubai, em João Pessoa, no dia 23 de novembro. - Reprodução
Os despejos revelam a violência da propriedade privada da terra

Por Rafael Faleiros de Padua*

 

Quando refletimos sobre a luta pela moradia no Brasil, que tem a ocupação de imóveis e terrenos desocupados e sem qualquer função social como principal instrumento de luta e constatamos os frequentes despejos de ocupações, podemos pensar alguns conteúdos da realidade brasileira contemporânea. Levantaremos alguns pontos que ajudam a pensar essa realidade:

A primeira questão é que a cidade é o nosso lugar da vida, onde nós realizamos concretamente a vida. No entanto, a realização das condições de nossa vida estão atravessadas pela lógica capitalista, que é a tendência de tudo ser transformado em mercadoria. A nossa vida está quase toda perpassada por essa lógica. Para vivermos nós temos que ter dinheiro para comprar as coisas necessárias para a nossa reprodução e da nossa família. 

Essa lógica nos impõe muitos problemas, porque desde que nós nascemos nós já somos espaço e produzimos nosso espaço para viver. E o espaço, nessa lógica capitalista, é também transformando em mercadoria, a propriedade privada da terra. Ou seja, todos nós temos que pagar para morar em algum lugar. Precisamos, segundo a lógica da mercadoria, ter a propriedade de algum lugar para viver. 

Aqui então temos uma contradição importante que é o fato de que todos nós temos que ter um lugar para viver, uma moradia, um lar, mas nem todos nós temos as condições (segundo essa lógica capitalista que transforma, ou pretende transformar, tudo em mercadoria) de comprar um lugar para morar. 

É preciso chamar a atenção para o fato de que a cidade é um lugar de conflitos, que estão fundamentados numa contradição central entre a cidade e o espaço como o lugar de realização da vida e a cidade e o espaço como lugar de reprodução do capital. Essa contradição revela em primeiro lugar que todos nós, como condição de nossa humanidade, precisamos habitar um lugar, precisamos ter uma moradia, um lar. 

A origem da palavra lar vem do nome de deuses romanos (da Roma antigo) que protegiam as casas e os espaços íntimos das famílias. Lar também designou o lugar na cozinha onde se acendia o fogo, elemento fundamental na preparação dos alimentos e que aquece a casa. Depois essa ideia passou a designar a toda a moradia e expressa essa necessidade de termos um lugar quente, acolhedor, um lugar da nossa privacidade junto com as pessoas mais próximas.

Há um filósofo, o Heidegger, que vai dizer que o habitar faz parte da constituição do ser do homem. Ou seja, nossa condição humana passa por termos um espaço ou construirmos um espaço onde morar, pra descansar, onde realizamos nossas atividades básicas para reproduzir nossa vida. 

Estes são argumentos para reafirmar a legitimidade da luta pela moradia, que essa luta é uma luta pela nossa humanidade. Mas como eu disse antes, a cidade é um lugar de conflitos, o que quer dizer que existem diferentes interesses divergentes, contrários, na cidade. 

Resumindo esses interesses contrários eu vou chamar a atenção para os interesses dos proprietários de terrenos, construtoras, imobiliárias, bancos, cujo interesse central é ter lucros vendendo terrenos, construindo casas, prédios, o que seja, vendendo ou alugando esses imóveis. Estão interessados nos lucros que podem auferir com a transformação da cidade em mercadoria. Nesse contexto, todo o resto da sociedade que não está nesse grupo, sofre os efeitos desse aprofundamento da cidade como mercadoria. 

E quem mais sofre com esse processo? As parcelas mais pobres da sociedade. Todos nós temos que morar em algum lugar, isso faz parte da nossa condição de ser humano. As ocupações de imóveis e terrenos realizadas por essas parcelas da população que não têm acesso à mercadoria casa se instalarão onde? Onde essa característica de mercadoria da terra urbana é menos atrativa: nos fundos de vales, nas encostas, onde não interessa ao mercado imobiliário. 

Os movimentos sociais têm um papel importantíssimo nessa conquista de espaços para moradia na cidade, fazendo ocupações de terrenos e prédios que não cumprem a função social da propriedade, ou que estão parados há muitos tempo, com dívidas com o Estado, ou mesmo de prédios e terrenos do próprio Estado que estão vazios e que deveriam ser destinados à uma função social de moradia. Há, portanto, uma luta constante na cidade entre o direito de habitar um lugar e a propriedade privada da terra. 

Se andarmos pela cidade nós vamos encontrar muitos prédios e casas vazios, muitas vezes até caindo aos pedaços, que deveriam ser arrecadados pela prefeitura e destinados à moradia popular. São prédios e casas que não cumprem qualquer função social, sendo uma propriedade privada que aguarda uma valorização do espaço para se realizar enquanto propriedade, mesmo descumprindo as leis brasileiras. Mas por que o Estado brasileiro em suas três instâncias, federal, estadual e municipal, geralmente não cumpre a lei de dar destinação social a imóveis que não cumprem a sua função social? Porque o Estado brasileiro é um Estado capitalista que é governado e dominado pelos proprietários de terrenos e imóveis, por representantes do setor imobiliário, por classes que têm interesse econômicos no espaço urbano. O Estado geralmente não cumpre a própria constituição e pior que isso, atua muitas vezes violentamente para defender a propriedade privada da terra contra os pobres urbanos que ocupam terrenos e constroem suas casas com seu próprio trabalho. 

São muito comuns, vemos toda hora nos noticiários as reintegrações de posse em terrenos que comprovadamente não cumprem sua função social. Há muitos exemplos da truculência com que famílias de sem-teto são rotineiramente expulsas de ocupações. Os despejos revelam a violência da propriedade privada da terra (e dos agentes econômicos e do Estado) contra o direito à moradia dos mais pobres.

Essa realidade evidencia que a cidade é um lugar de conflitos e que a luta coletiva para a conquista de direitos sociais é essencial.
 

*Professor do Departamento de Geociências da UFPB, coordenador do Projeto de Extensão “Em busca do direito à cidade: ações e debates sobre as lutas urbanas” e participante do FERURB-PB 

Edição: Heloisa de Sousa