Paraíba

Coluna

O trabalho das mulheres no enfrentamento às desigualdades sociais que pioraram com a pandemia

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Mulheres da comunidade Aratu, em João Pessoa, aguardam por alimentos durante ação de solidariedade em 1° de maio de 2021. - Heloisa de Sousa
A solidariedade é uma prática inerente das mulheres para sustentar a vida e transformar a sociedade.

Por Ana Cristina de Oliveira Mélo* e Alexandre Cesar Cunha Leite**

Vivemos numa sociedade que separa e valora o trabalho de mercado e o trabalho doméstico e de cuidados de formas distintas. O primeiro é remunerado financeiramente e, historicamente, foi e continua sendo realizado por homens e mulheres. O segundo, também conhecido como “tarefas de dona de casa” é realizado majoritariamente por mulheres e muitas vezes não é reconhecido como trabalho. Ambos são trabalhos difíceis, cansativos e importantes. Mas por que então apenas o trabalho realizado fora de casa é remunerado e reconhecido socialmente?

Todo ser humano, desde a sua infância, necessita de bens essenciais para satisfazer suas necessidades básicas tais como: água, alimentos e moradia para se proteger das intempéries climáticas. Além das necessidades físicas, há também as subjetivas, que estão no âmbito do afeto, tais como, proteção, tratamento, carinho, bem-estar, estímulo e orientação. O ser humano necessita também de serviços que devem (ou deveriam segundo a Constituição vigente) ser providos pelo Estado como saúde e saneamento básico, para prevenir e curar doenças; educação para formação, no sentido amplo do termo, e não apenas escolaridade direcionada ao mercado de trabalho; e de transporte para atender ao direito básico de ir e vir. 

Ao sair para o trabalho ou para escola, o/a indivíduo/a encontram a casa limpa, o café da manhã preparado, a roupa em condições de uso, lanche ou marmita prontos para levar ao trabalho ou à escola. E todo esse trabalho, que é tão necessário para que haja o trabalho ou qualquer outra atividade social fora de casa e a própria reprodução da vida humana, é diariamente feito por mãos que são completamente invisibilizadas pela sociedade, pelo Estado e até mesmo pelos membros da família. Esse trabalho realizado no interior dos lares não é reconhecido socialmente, e como ele não gera nenhum produto ou serviço direto, reconhecido como valor de troca, logo, com valor atribuído, torna-se totalmente invisibilizado, é como se ele sequer existisse. Esta atividade, além de não ser devidamente reconhecida, consiste em uma atividade realizada 365 dias por ano, sem direito a férias, licença ou qualquer descanso. Só sentimos a falta dele quando ele não é realizado, logo pode-se dizer que é uma atividade que possui valor de uso, mas que não se converte em valor de troca, e consequentemente, em remuneração. 

Com a necessidade de isolamento social na pandemia de Covid-19, o fechamento compulsório de escolas e creches impactou fortemente a dinâmica das famílias. Boa parte das atividades de cuidados foram acrescentadas às atividades domésticas pré-existentes. De acordo com o Censo da Educação Básica (2020), há 8 milhões de crianças na educação infantil e 33 milhões de jovens na educação básica. Com o isolamento e com essa parcela da população que em condições normais estaria na escola, trouxeram às mulheres uma sobrecarga de trabalho doméstico, devido, entre outras atividades, ao aumento do tempo gasto no preparo das refeições destinadas às crianças e aos jovens que se alimentavam nas escolas. Aumentou também a assistência às atividades escolares pois uma parcela era realizada nas escolas contando com o auxílio de profissionais preparados para tais atividades: os/as professores/as. Não são casos isolados as mulheres tiveram que abandonar seus empregos e/ou seus estudos, ou até mesmo optar por trabalhos informais com maior flexibilidade de horários, para conciliar (e dar conta) a sobrecarga de afazeres domésticos pois muitas destas não contam com uma rede de apoio que as amparassem diante da sobrecarga de atividades. A postura política de Jair Bolsonaro, que desde o início minimizou a pandemia global de Covid-19, e a atuação do ministro da economia Paulo Guedes, foi marcada pelos atrasos à adoção de políticas efetivas de assistência às famílias vulneráveis. Os auxílios quando vieram não consideravam parcela significativa da população vulnerável nem os atrasos para a sua implementação deixando um contingente significativo sem acesso a renda ou a transferências de cunho social. Consequentemente, no Brasil aprofundou-se uma crise já presente no início do governo Bolsonaro, levando o país de volta ao mapa da fome, contabilizando, segundo os dados da Rede Penssan, 19,1 milhões de pessoas em situação de fome no Brasil (Rede PenSSAN). A fome é um problema estrutural, ele não é apenas um fato momentâneo, a fome é a expressão da perversidade desse sistema capitalista que coloca o lucro acima da vida das pessoas. E claro, decisões políticas podem intensificar o problema, e segundo as pesquisas disponíveis desde 2020 é isso que o período de governo Bolsonaro tem feito, intensificar desigualdades, intensificar elementos estruturais que deterioram a condição humana, dentre elas, a fome. 

Bem, até agora falamos de atividades que são realizadas nos lares, mas e quando até estes são retirados das famílias? A situação é ainda mais triste. Atualmente, existem milhões de brasileiros que não têm moradia, tornando, assim, as ocupações urbanas uma realidade dos grandes centros. Em João Pessoa, as ocupações surgem como uma resposta à ausência do Estado na execução de projetos de moradias e na regulação da alta especulação imobiliária que torna os valores de aluguéis cada vez mais altos. Com o desemprego crescente, a contínua elevação do preço da cesta básica, do gás de cozinha, dos combustíveis, da energia elétrica e dos aluguéis, o salário não tem sido suficiente para prover o básico para as famílias. Dado essa conjuntura desumana, a solidariedade se tornou uma realidade necessária e urgente nas comunidades. Indivíduos organizados em movimentos sociais, instituições filantrópicas, movimentos religiosos diversos, população em geral e lideranças comunitárias viram na solidariedade e na coletividade uma saída para que a periferia não morresse de fome. Movimentos do campo como o MST doaram toneladas de alimentos para as famílias e cozinhas comunitárias foram construídas em locais que não possuem estruturas para cozer os alimentos. Com o alto índice de contaminação pelo vírus da Covid, iniciativas de preparo de sabões artesanais e água sanitária pelo movimento social Marcha Mundial das Mulheres deram início e ganharam importância na capital paraibana, bem como produção de máscaras para distribuição.
 
E quem está na linha de frente dessas ações? Quem são as lideranças que se movem para buscar comida, para buscar o sustento, para impedir tantos despejos? Ousamos dizer que majoritariamente encontramos mulheres a frente de tantas batalhas. São mulheres guerreiras, consciente da força da ação coletiva coordenada, cientes do seu papel social e com forte consciência políticas que veem criando alternativas coletivas para enfrentar as dificuldades tais como falta de renda e a necessidade de gerar sustento, mesmo que emergencial para suas famílias e demais famílias nas comunidades. Atuando de forma cooperativa, organizando as responsabilidades, mobilizando as pessoas das comunidades elas se tornaram agentes decisivas na sobrevivência das pessoas e agentes políticas e sociais nestas comunidades. São estas mulheres que mesmo vivendo em situação de severas restrições, carências, e fome ainda encontram forças, tempo e disposição para trabalhar, cuidar das crianças, dos idosos, dos doentes, e se organizarem coletivamente para lutar por condições de vida plena, com moradia, saúde, educação e trabalho.

A solidariedade é uma prática inerente das mulheres para sustentar a vida e transformar a sociedade. Faz-se necessário lembrar que essas mulheres possuem classe e raça, essas mulheres que com tanta garra vivem diariamente o desafio de garantir comida e renda para suas famílias são em sua maioria negras e vivem nas periferias das cidades. As mulheres negras são a maioria das empregadas domésticas, das diaristas, das desempregadas, das catadoras de materiais recicláveis; elas são a maioria na luta diária pelo sustento e pelos direitos que lhes são violados. Diante da intensificação do conflito entre o capital e a vida, a solidariedade e a luta coletiva das mulheres que estão na linha de frente faz parte da história da sociedade e tornar tais lutas visíveis bem como o imenso trabalho realizado por essas mulheres é um papel de todos e todas nós.
 

*Militante da Marcha Mundial de Mulheres e Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: [email protected].


**Professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), pesquisador do FOMERI/UFPB e criador do SACIAR (@_saciar). E-mail: [email protected]

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Cida Alves