Paraíba

Coluna

Proposta de um verão caribenho

Imagem de perfil do Colunistaesd
Ilustração - Imagem Reprodução
“E, no vazio da história, a ficção, o invento, entra para suprir a ausência de informação”

Por Surya Aaronovich Pombo de Barros*

Faz calor em João Pessoa e o mar está lindo como nunca e sempre, com pouco vento, águas mornas e a constante alusão a como as praias paraibanas “parecem o Caribe”. Uma parte da praia da cidade recebe o apelido de “Caribessa” e faz sua fama sobre esse jogo de aproximação com o imaginário sobre a região caribenha, que é o do mar transparente, coqueiros, frutas tropicais, calor, suor e férias. 
No entanto, temos muito mais em comum com o Caribe do que supomos. A história colonial que sempre traz em seu bojo a exploração econômica, uma diminuta elite de origem européia, a produção baseada na escravidão, a população composta majoritariamente pelos frutos da diáspora africana, a mestiçagem, são elementos análogos aos da formação do Brasil. Por outro lado, diversos países, línguas, nacionalidades dos exploradores, culturas estão presentes nas pequenas ilhas que compõem a região. 


Fonte: https://www.guiageo.com/america-central.htm / Ilustração

A literatura nos leva a esses lugares, nos apresenta costumes, culinária, linguagens, e dramas humanos, muitos deles específicos, muitos universais. Para essa aproximação, sugiro três autoras de diferentes países, cujas obras são janelas para ampliarmos nosso horizonte e percebermos que o Caribe está muito perto do Brasil, não apenas no sentido geográfico.

***

Eu, Tituba - Bruxa Negra de Salém, de Maryse Condé, foi escrito em 1986 e publicado no Brasil em 2019 (Ed. Rosa dos Tempos). A autora nasceu em 1937 em Guadalupe, um departamento ultramarino francês. A edição brasileira a apresenta como “feminista, professora emérita de francês e filologia românica na Columbia University. É autora de mais de vinte livros, de diversos gêneros literários. Em 2018 recebeu The New Academy Prize in Literature, premiação criada como alternativa ao Nobel Prize de 2018, suspenso após denúncias de violência sexual envolvendo integrantes da instituição”. 


Fonte: Revista Bula. 
https://www.revistabula.com/31949-eu-tituba-bruxa-negra-de-salem-de-maryse-conde/  Imagem Reprodução

“E, no vazio da história, a ficção, o invento, entra para suprir a ausência de informação” (p. 12) escreve Conceição Evaristo no prefácio dessa obra incrível sobre a primeira mulher a ser acusada de feitiçaria em Salem, Estados Unidos. Maryse Condé parte da personagem real, de quem sobraram pouquíssimos registros e existem raros estudos, e reconstrói de maneira ficcional suas origem desde a mãe trazida da África para Barbados e violentada por um marinheiro inglês, sua infância, a exploração sofrida: “O que me deixava mais estupefata e revoltada não era tanto as palavras que diziam, mas a maneira como diziam. Parecia que eu não estava lá, em pé, na entrada da sala. Falavam de mim e ao mesmo me ignoravam. Elas me riscaram do mapa dos humanos. Eu era ausência. Um invisível" (p. 51). 
A saga acompanha Tituba, a mudança de proprietários e consequente viagem para Estados Unidos: “Para tentar me reconfortar, usei um remédio. Enchi uma tigela de água e deixei perto da janela, de modo que pudesse vê-la enquanto girava e girava na cozinha e ali prendi o meu Barbados. Consegui fazê-lo de modo que tudo estivesse ali. A ondulação dos canaviais que se estendiam até as ondas do mar, os coqueiros recostados à beira mar e as amendoeiras repletas de frutos vermelhos ou verde-escuros. Se eu distinguia mal os homens, podia ao menos ver as colinas, as cabanas, os engenhos de açúcar e as carroças de boi chicoteados por mãos invisíveis. Distinguia as casas e os cemitérios dos senhores. Tudo se movia no mais profundo silêncio no fundo da minha tigela, mas essa presença aqueceu meu coração” (p. 99). 
Os acontecimentos relacionados à acusação de bruxaria são contados em primeira pessoa com a mesma emoção e lirismo. Tituba sintetiza a diáspora africana e o apagamento de pessoas negras na história, especialmente mulheres, a quem Condé amplifica a voz, tal como diz na epígrafe: “Tituba e eu vivemos uma estreita intimidade durante um ano. Foi no decorrer de nossas intermináveis conversas que ela me disse essas coisas que ainda não havia confiado a ninguém” (p. 21).

***

A autobiografia da minha mãe, de Jamaica Kincaid, de 1996 é a segunda obra aqui indicada. A autora nasceu em 1949, em Antígua e Barbuda, país vizinho a Barbados. Ela é apresentada como “ganhadora de diversos prêmios literários, entre eles o Prix Femina e o PEN/Faulkner, atualmente mora em Vermont e dá aulas de história africana e afro-americana na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos”, na primeira edição brasileira do livro, de 2020 (Ed. Alfaguara). 


O livro é denso, profundo, assombroso, impactante. Fala de uma mulher na diáspora africana, sobre colonização, patriarcado, sobre a força feminina. Começa com a seguinte apresentação de Xuela Claudette Richardson: “Minha mãe morreu no momento em que eu nasci, e por isso durante toda a minha vida nunca existiu nada entre mim e a eternidade; às minhas costas, sempre um vento triste, sombrio. No começo da vida eu não tinha como saber que seria assim; soube apenas no meio dela, quando já não era jovem e percebi que tinha menos de algumas coisas que costumava ter em abundância, em mais de outras que antes mal tivera. E essa percepção de perda e ganho me fez olhar para trás e para frente: no início havia uma mulher cujo rosto eu nunca vira, mas no final não havia nada, ninguém entre mim e o quarto escuro do mundo. Passei a sentir que por toda a vida estive parada à beira do precipício, que minha perda havia me tornado vulnerável, dura e indefesa; ao me dar conta disso fui dominada por tristeza e vergonha e pena de mim mesma” (p. 7).


Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jamaica_Kincaid / Ilustração 

E assim a autora conta sobre a vida da heroína, sua relação com o pai escocês, a ida à escola, a mestiçagem: “Havia sete garotos e eu. Os garotos também eram todos do povo africano. Minha professora e aqueles meninos me olhavam sem parar: eu tinha sobrancelhas espessas; meu cabelo era grosso, volumoso e ondulado; meus olhos eram muito separados e amendoados; meus lábios eram largos e estreitos de uma forma inesperada. Eu era do povo africano, mas não exclusivamente. Minha mãe era uma mulher caraíba, e quando me olharam era o que viam: o povo caraíba tinha sido derrotado e depois exterminado, jogado fora como as ervas daninhas de um jardim; o povo africano tinha sido derrotado, mas havia sobrevivido. Quando me olhavam, só viam o povo caraíba. Estavam enganados, mas não disse isso a eles” (p. 14). Acima de tudo, Jamaica Kincaid fala da força feminina, da autodeterminação, do profundo orgulho dessa mulher: “O ímpeto de possuir está vivo em todos os corações, e tem quem escolha vastas planícies, tem quem escolha montanhas altas, tem quem escolha mares imensos, e tem quem quem escolha maridos; eu escolhia possuir a mim mesma” (p. 105).

***

Clara da Luz do Mar, de Edwidge Danticat, de 2013, termina essa proposta de viagem pelos mares do Caribe. A autora nasceu no Haiti em 1969, sendo levada com 13 anos de idade para viver junto aos pais nos Estados Unidos. Ela é apresentada da seguinte forma na edição brasileira de 2021 (Ed. Todavia): “Romancista e contista, é autora de Brother, I´m Dying, Breath, Eyes, Memory e The Farming Bones, entre outros. Recebeu prêmios como o National Book Critics Circle Award e o American Book Award, bem como uma bolsa da MacArthur Fellowship, e seus textos apareceram em publicações como o jornal New York Times e a revista New Yorker”.


Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Edwidge_Danticat / Imagem Reprodução

Acompanhamos a história da menina que dá nome à obra e mais um conjunto de personagens nessa linda e delicada novela, em uma cidade haitiana ficcional, mas cujos costumes, paisagens, comidas, ditados, problemas e hábitos são inspirados no país natal da autora: “Ville Rose era o lar de cerca de onze mil pessoas, cinco por cento delas abastadas ou financeiramente confortáveis. Os outros habitantes eram pobres, alguns, miseráveis. Muitos não tinham trabalho, mas alguns eram lavradores ou pescadores (alguns, os dois). ou trabalhadores sazonais nas lavouras de cana-de-açúcar.  Pouco mais de trinta quilômetros ao sul da capital e apertada entre um trecho das águas mais imprevisíveis do mar do Caribe e uma cadeia de montanhas erodidas do Haiti” (p. 15). Estão presentes as questões de gênero, o impacto do colonialismo e da escravidão: “Sò Rose, ancestral direta de Gaëlle, era a mulher de cor livre, a affranchie rica, que tinha fundado a cidade depois da partida de Pauline Bonaparte. A própria Sò Rose tinha recebido esse nome de sua mãe escrava e de seu francês em homenagem a Sainte Rose de Lima, a padroeira da região Sul” (p. 59). 
Claire, como Tituba e Xuela, também não tem mãe, também é fruto da diáspora: “Ela se perguntou se sua mãe teria sido capaz de fazer o que seu pai estava fazendo, se ela teria coragem de entregá-la daquele jeito, para outra pessoa. Ela conhecia tanto pais como mães, famílias de pescadores, que tinham entrega dos filhos, tanto meninas como meninos. Tinham levado os filhos para parentes distantes na capital para trabalhar como restavéks, crianças que serviam como criados e criadas. Outros tinham levado os filhos aos brancos do Sainte Thérèse e os brancos tinham posto as crianças em orfanatos. Algumas dessas crianças eram levadas para a capital e para outros lugares e nunca mais eram vistas nem se ouvia falar delas. Elas se tornavam filhos de outras pessoas em outras terras que nem sabiam existir” (p. 211).

***

Além de ler as obras dessas e de tantas outras escritoras e outros escritores do Caribe, vale a pena navegar pela galeria da artista plástica Firelei Báez, nascida na República Dominica, criada na fronteira entre esse país e o Haiti e radicada nos Estados Unidos desde os 10 anos. Sua obra, como os livros indicados, transita entre diferentes mundos, tratando da diáspora africana e diáspora caribenha, sobre questões de gênero e feminismo, deslocamento e memória. 
Boas leituras, boa viagem!

*Historiadora, professora de Política Educacional, Educação e Relações Raciais e História da Educação/UFPB. Email: [email protected]

 

 

 

Edição: Cida Alves