Lélia Gonzalez abre espaço a diálogos interculturais e inaugura outros processos de democratização
Por Luz Santos*
Ao alertar sobre “os perigos de uma história única” a feminista e escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chama atenção para o discurso hegemônico, lógica do colonialismo fundante nas nações latino-americanas como o Brasil. No debate sobre a descolonização do conhecimento, importa refletir alguns aspectos sobre a presença ético-política-militante de mulheres negras, desde uma noção de democratização do pensamento acadêmico. Por pensamento acadêmico compreendo todo àquele produzido nos diferentes níveis acadêmicos seja no ensino, pesquisa ou extensão.
No Brasil, a lógica binária fundante da colonialidade estrutura o modo pensar-sentir desde o período do Tratado de Tordesilhas e fomenta a dependência acadêmico-colonial. Outrora formou ditos intelectuais nas Universidades do Império e instalou o modelo de pensamento colonial. A invisibilizada participação do conhecimento dos nomeados subalternos − leiam-se saberes negros e indígenas − reitera o status de lógica hierárquica à academia desde os tempos de Pindorama.1
Todavia, o legado ético-político de mulheres negras na democratização do pensamento acadêmico implicou na virada de episteme, tal qual o protagonismo político-científico de mulheres negras como Lélia Gonzalez e o seu “pensamento amefricano”. A intelectual negra e ativista Lélia de Almeida Gonzalez, que faria 87 anos neste 1º de fevereiro, articulou categoria político-cultural fundando as bases para sentir-pensar-movimentar geopolíticas latino-americanas desde a intersecção de gênero, classe, raça e sexualidade.
Na sabedoria de Elegbara2, estratégias democráticas colaborativas e comunitárias têm impactado em experiências de democratização do pensamento acadêmico. A Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) empreende caminhos possíveis na desconstrução da lógica binária. A rede nacional do Consórcio NEABIs, áreas científicas como os Feminismos Negros e o Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as (COPENE 2022) que em sua 12ª edição traz o tema Democracia, Poder e Antirracismos: avanços, retrocessos legais e ações institucionais são algumas dessas estratégias articuladas ao conhecimento ancestral.
“Quando a gente pensa em pesquisador remete a um tipo de pessoa com uma especialização, atuante no mestrado, doutorado ou pós-doc. Mas para nós, pretos e pretas, pesquisador não é isso. É importante dizer para a sociedade e para as pessoas que estão na academia: as pesquisas relacionadas às pessoas negras estão também fora da academia com os ativistas, com os zeladores das tradições de matrizes africana seja no candomblé, na capoeira, no congado. Além disso, é importante mostrar aos jovens negros no ensino fundamental e médio que ele é um potencial pesquisador/a negro/a. Falar sobre a existência de outros/as pesquisadores negros e negras no mundo. Em outras palavras, que nós somos seres científicos, tecnológicos, inteligentes e articulados que pensam e planejam” enfatiza a Dra. Nicéa Quintino, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN na gestão 2018-2020 e editora-chefe da Revista ABPN no período 2017-2018.
A dissociabilidade de epistemologias da diferença às corporalidades negras e indígenas reflete o racismo e sexismo epistêmicos na estrutura da educação em todos os níveis, notadamente na produção do conhecimento. A invisibilidade de epistemologias afrodescendentes e ameríndias põe em evidência o tipo de relação ético-político na produção do conhecimento científico. Necessária se faz outra noção ético-política diante de conhecimentos em movimento.
Na trajetória da democratização do pensamento acadêmico são identificados processos coletivos, reinvindicações e críticas. Produções científicas e em redes sociais de caráter ancestral como vem realizando o Núcleo de Estudos e Pesquisas É'LÉÉKO (UFPel/UFRGS). A guerreira educadora Andila Inácio Kaingang aponta reinvindicações pela retomada da Universidade e tradições de sabedoria oral. Já Iranilza Potiguara debate criticamente as relações sobre alteridade e espiritualidade no universo acadêmico. Todos caminhos de re-existência acadêmico-democráticas.
Dados do Censo da Educação Superior (2019) destacam o crescimento do número de mulheres indígenas no ensino superior em 620%. Contudo, a população indígena representa apenas 0,5% dos ingressantes na Universidade. Em algumas escolas indígenas na Paraíba, por exemplo, professoras indígenas desenvolvem suas funções laborais por meio de contratos de professor substituto, situação que as impossibilita de concorrer a editais formativos em mestrados profissionais cuja exigência passa pela contratação efetiva.
Não faz sentido apoiar lógicas hierarquizantes e seus imaginários de inferioridade humana, tão pouco o negacionismo científico sobre as corporalidades epistêmicas negras e indígenas. Torna-se insustentável o diálogo com os processos de pesquisa científica quando dissociado das vivências e experiências com a ancestralidade negra e ameríndia, protagonistas na descolonização do pensamento, dinâmica da educação de(s)colonial e antirracista.
Lélia Gonzalez nasceu em 01º de fevereiro de 1935 e nos deixou em 10 de julho de 1994. Ativista do Movimento Negro, fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU), duas vezes candidata a deputada estadual, filósofa, antropóloga e professora universitária. A intelectual negra Lélia Gonzalez denunciava o sentido para o distanciamento entre a democratização e o pensamento acadêmico: a manutenção da colonialidade operada pelo racismo. Nesse sentido, a reinterpretação do Estado brasileiro pelas lentes do Feminismo Afro-Latino-Americano escancara as insuficiências democráticas de uma Nação em se reinventar e se desfazer da herança colonial racista e sexista, em “roupagens” fascistas.
Ao invés da subserviência à narrativa acadêmica de ordem capitalista-patriarcal operada pela academia ocidentalizada descolada das experiências corporais e negadoras de memórias, o Feminismo Afro-Latino-Americano de Lélia Gonzalez mantêm vivas as tradições e culturas articuladas aos modos de viver a espiritualidade e a memória.
Em meio aos ataques à educação e ciência brasileiras, a resistência do pensamento de mulheres negras como LÉLIA GONZALEZ abre espaço para diálogos interculturais e inaugura outros processos de democratização do pensamento acadêmico. Alguns já exemplificados como modos de re-existir. Com a força das Íyá Mi3, trilhas de uma ambiência acadêmica para o Bem Viver.
Axé Muntu4, Lélia Gonzalez!
Notas:
1 Nome dado ao Brasil pelos povos originários antes da colonização.
2 Um dos títulos de Èsù, dono da força para abrir caminhos. Dicionário yorubá-português, de José Beniste (2011); Enciclopédia brasileira da diáspora africana, de Nei Lopes (2011).
3 Na tradição dos orixás, nome que representa coletivamente todas as genitoras ancestrais como Nanã, Iemanjá etc. Enciclopédia brasileira da diáspora africana, de Nei Lopes (2011).
4 Expressão de saudação criada por Lélia Gonzalez, misturando as línguas ioruba (axé – poder, força, energia, tudo de bom) e kimbundo (muntu – gente).
Para saber mais:
Amefricanidade – Documentários. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=s-U2xNwkd_w. Acesso em: 17 jan. 2022.
ALVES, Míriam Cristiane (Org.) A Matriz Africana: Epistemologias e Metodologias Negras, Descoloniais e Antirracistas. Porto Alegre: Rede Unida, 2020.
GONZALEZ, L. Por um Feminismo Negro Afro Latino Americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
KAINGANG, Bruno Ferreira, M´BYA, Eloir de Oliveira; MENEZES, Magali Mendes. As cartas, os povos indígenas e a retomada da Universidade. Net. Porto Alegre, Jul. 2021. Jornal da Universidade UFRGS. Disponível em: https://www.ufrgs.br/jornal/as-cartas-os-povos-indigenas-e-a-retomada-da-universidade/. Acesso em: 17 jan. 2022.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 4ª ed. - São Paulo: Selo Negro, 2011.
Portal Geledés - Menos de 3% entre docentes da pós-graduação, doutoras negras desafiam racismo na academia. Disponível em: https://www.geledes.org.br/menos-de-3-entre-docentes-da-pos-graduacao-doutoras-negras-desafiam-racismo-na-academia/. Acesso em: 02 Jan. 2021.
*Maria Luzitana Conceição dos Santos (Luz Santos) é ativista no Movimento de Mulheres Negras na Paraíba, Professora da UFPB, Doutoranda em Educação/UFRGS, integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB), do Núcleo de Estudos e Pesquisas É'LÉÉKO (UFPel/UFRGS), colaboradora no Centro de Estudos Avançados – América Latina da UFPE (CEA-AL/UFPE) e idealizadora da Rede Afro-latino-empreendedora, Educativa e Colaborativa no Secretariado (RECOSEC/UFPB).
Edição: Heloisa de Sousa