A cidade é uma totalidade e que não podemos entender a pobreza descolada da riqueza
Rafael Faleiros de Padua*
As cidades brasileiras evidenciam em sua paisagem imensas desigualdades que precisam ser pensadas e combatidas. Nos últimos anos verificamos que a desigualdade vem aumentando e temos inúmeros exemplos desse fenômeno. A pobreza, exposta nas ruas em sua dimensão mais brutal, com o aumento de famílias que passam fome cotidianamente.
Não é algo natural. É uma das maiores invenções da humanidade, tanto é que é um objeto que existe continuamente há milênios na história
Todos nós nos deparamos todos os dias com situações de pessoas e famílias, moradoras da cidade, que não têm garantida a sua sobrevivência. Ao mesmo tempo, na mesma cidade vemos lugares luxuosos, prédios enormes e super equipados com espaços de lazer e aparatos de segurança. Enquanto muitos carregam com os próprios braços os materiais de reciclagem vasculhados nos lixos em carrocinhas improvisadas construídas por eles próprios, as ruas estão repletas de carros novos e caros.
Enquanto temos regiões da cidade com toda infraestrutura, ruas pavimentadas, iluminação, outras regiões são compostas por moradias precárias e sem qualquer infraestrutura, com ruas de terra, esgoto sem qualquer tratamento, distantes do centro.
Como podemos entender essa realidade, tão exposta nas nossas cidades e tão mascarada enquanto contradição a ser enfrentada por toda a sociedade? A nossa hipótese é que a cidade é uma totalidade e que não podemos entender a pobreza descolada da riqueza. A cidade é uma produção social, é a sociedade que a produz.
Não é algo natural. É uma das maiores invenções da humanidade, tanto é que é um objeto que existe continuamente há milênios na história, sobrevivendo a diferentes modos de produção e se transformando nesse processo histórico. Um conteúdo que perpassa toda essa história da cidade é o fato de que ela é um lugar de concentração de populações, de equipamentos, é o lugar das trocas, de todas as trocas, não somente as comerciais, é o lugar da reunião e da festa, é lugar do encontro dos diferentes e das diferenças.
A cidade é, nesse sentido, um objeto produzido na história da humanidade que potencializou o processo de humanização do próprio homem, ao potencializar as trocas de conhecimentos, de culturas, de saberes, enfim, potencializando as conquistas da humanidade. A realidade desigual que vivemos hoje nas cidades brasileiras precisa ser pensada enquanto contradição diante das possibilidades do espaço urbano de permitir a realização da reprodução da vida de modo pleno.
Uma questão central do funcionamento do modo de produção capitalista é a sua tendência em transformar tudo em mercadoria. A própria cidade é inserida nessa lógica, através da propriedade privada da terra, que impõe a mediação de uma quantia de dinheiro para poder morar num pedaço da cidade. As necessidades mais básicas, o comer, vestir, morar, se locomover, são transformados em mercadorias, ou seja, seu uso é mediado por uma quantia de dinheiro. As necessidades mais básicas do ser humano são então dominadas pela lógica da mercadoria, cujo fundamento é a valorização de capital, e não a realização da vida.
Há uma contradição nesse processo, pois a própria reprodução do capital necessita, evidentemente, da reprodução da vida para sua continuação.
O modo de produção capitalista, que se apresenta como um sistema, tem brechas em seu funcionamento. Essas brechas mostram os limites do capitalismo e apresentam possibilidades de transformação para formas mais interessantes de sociabilidade. Na própria cidade o tempo todo afloram momentos de apropriação concreta para além da mediação da lógica da mercadoria que nos apontam para essas possibilidades. Os momentos de criação de coletivos de jovens, ou a arte que se realiza nos espaços públicos, as manifestações, os encontros de todas as ordens.
Dessa forma, as desigualdades não podem ser naturalizadas como são o tempo todo em nossa realidade. O Estado, que muitas vezes é pensado como um Estado provedor, é uma instância central na reprodução das desigualdades, pois atua de modo a alavancar cada vez mais a lógica da mercadoria sobre os espaços da cidade, sendo a principal mediação para tornar a própria cidade uma mercadoria (o que é algo sempre incompleto, com brechas).
É o Estado que garante que trabalhos ultra precarizados se realizem, de modo a valorizar capitais e empobrecer trabalhadores; é o Estado que garante que a propriedade privada da terra se sobreponha ao direito à moradia, entre muitas outras questões. O Estado é o elemento central para a potencialização das estratégias do nível do econômico sobre a sociedade como um todo.
Com isso, as desigualdades que vemos aumentando muito e com muitas evidências em nossa realidade, é um fenômeno que tem causas, que pode ser entendido e pode ser combatido.
Os movimentos sociais, ao demandarem inúmeras necessidades que o capitalismo não garante a uma parcela grande da sociedade, muitas vezes têm a potência de questionar o Estado e o Econômico de forma radical, em seus fundamentos. Para combater as desigualdades é preciso iluminar as contradições postas na realidade e enfrentá-las. Esse enfrentamento é necessário para um avanço social em direção a uma apropriação concreta da cidade por seus moradores.
*Professor do Departamento de Geociências da UFPB, coordenador do Projeto de Extensão “Em busca do direito à cidade: ações e debates sobre as lutas urbanas” e participante do FERURB-PB
Edição: Cida Alves