essa situação é fruto da xenofobia e do racismo brasileiro
Por Wilson José Félix Xavier*
Horror. Tragédia. Barbárie. Essas eram algumas das palavras mais lidas e ouvidas no dia 24 de janeiro de 2022, nos dois mundos em que transitamos atualmente, como diria Bauman: no “on-line” e no “off-line”. A notícia do atroz e desumano assassinato do congolês1 Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, no Rio de Janeiro, foi recebida com uma profunda indignação por diversos setores da sociedade, com ampla repercussão nacional e internacional.
Refugiado desde 2011, Moïse saiu da República Democrática do Congo para juntamente com sua mãe e irmãos, fugirem de uma cultura de guerra, quase permanente, após a conquista da independência da Bélgica. Infelizmente, não conseguiu escapar da barbárie que tem sido normalizada no Brasil quando envolve pessoas pobres e pretas, em situação de vulnerabilidade, da periferia. Uma parte considerável da população imigrante e refugiada no Brasil se insere nesse grupo. O cenário que Moïse e sua família desconheciam ao chegarem aqui, talvez, amparados no “olhar estrangeiro” que representa o Brasil como país sempre alegre, hospitaleiro e cordial, é o do racismo cotidiano, ou seja, aquele vivenciado pelas pessoas negras como padrão contínuo de abuso e exposição constante ao perigo, que se traduz na ampla violência, repressão e extermínio de pessoas negras.
Nesse sentido, Ribeiro (2019) aponta que pessoas negras representam 71,5% das pessoas assassinadas no país, sendo que entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de indivíduos não negros (brancos, amarelos e indígenas) diminuiu 6,8%, enquanto a taxa de homicídios da população negra aumentou 23,1%. Outro dado importante é o da Anistia Internacional, de que, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, o que evidencia que está em curso o genocídio da população negra, sobretudo homens jovens.
Os números são alarmantes e não podemos perder de vista que outros mecanismos de destruição de vidas negras no Brasil têm se aperfeiçoado consideravelmente no contexto neoliberal, por meio de engrenagens sociais, tais como: pobreza endêmica, negligência com a educação e saúde de pessoas negras, criminalização da cultura afro-brasileira, e interdição da identidade negra, dentre outros. Esse quadro social de dor e morte é ainda agravado, no caso de imigrantes pobres, principalmente originários da África e da América Central e Caribe; pelo desprezo xenofóbico e pela aporofobia (aversão a pobres) de que são vítimas.
Segundo Paixão (2022), nos últimos anos de 2010 a 2021, foram registrados no Brasil 2.015 congoleses, de acordo com levantamento do Observatório das Migrações Internacionais (OBmigra), contudo, o número de imigrantes congoleses é bem maior, já que há no país cerca de 1.400 congoleses que chegaram nesse período e ainda aguardam pelo registro de residência. Parte importante da comunidade de imigrantes refugiados, os congoleses estão, porém, entre os mais mal remunerados.
Segundo o jornal A Folha de São Paulo, de 03/02/2022, no Brasil, um imigrante norte-americano ganha uma média de R$ 22.000,00 mensais, e um europeu ganha em média R$ 16.631,00. Enquanto isso, um congolês imigrante ganha em média R$ 1.862,00. Esses algarismos indicam um padrão de desigualdade de rendimentos e condições sociais de imigrantes no Brasil, relacionado à origem dos mesmos, mas também à cor, à raça/etnia, bem como à formação escolar e profissional. (PAIXÃO, 2022).
A desigualdade de oportunidades é manifesta e cristaliza-se em desigualdades ao longo de linhas raciais. A difícil condição financeira obriga as comunidades congolesas no Rio de Janeiro e em São Paulo (bem como outras comunidades africanas) a residirem em favelas, vivendo em condições precárias na periferia e, às vezes, na hiperperiferia, em virtude do aluguel mais baixo e para fugir dos custos com água e energia. (PAIXÃO, 2022).
Segundo Bas’llele Malomalo, professor congolês de Relações Públicas Internacionais da Universidade da Integração, muitos imigrantes congoleses deixam seus países de origem com uma profissão estabelecida - sendo lá pedagogos, artesãos, fotógrafos ou profissionais de informática – , e, chegando ao Brasil, deparam-se com o desemprego ou com a informalidade do mercado de trabalho, para o qual, geralmente, são direcionados para trabalhos que exigem esforço físico e pelo qual são mal remunerados, mesmo que possuam estudo e experiência. (QUALIFICADOS..., 2022).
Para o professor Malomalo, essa situação é fruto da xenofobia e do racismo brasileiro, que explica muita coisa: “Explica a morte dele [Moïse] porque um braço do racismo é o genocídio, é matar o outro, principalmente quando ele é preto, mas esse racismo também impede que esses refugiados congoleses – e africanos em geral – consigam um emprego”. (QUALIFICADOS..., 2022). Assim, refugiados, sobretudo africanos, vão descobrindo o preconceito de cor, a discriminação racial e a ideologia racista brasileira (disfarçados sob a máscara da chamada “democracia racial”), pois, precisam lidar frequentemente com a visão preconceituosa de que eles seriam menos civilizados e instruídos. Entendem que são recebidos, mas não acolhidos – além de agressões e hostilidades, não conseguem emprego devido à aparência, ou, quando conseguem, recebem menos que outros colegas. Precisam, enfim, lutar constantemente para que seus direitos sejam respeitados.
Assim, com precárias oportunidades de trabalho, a comunidade congolesa experimenta a pobreza urbana em todos os seus aspectos. Descobre a partir de um cotidiano violento, que neste país, historicamente, “[...] o negro foi condenado à periferia da sociedade de classes, como se não pertencesse à ordem legal. O que o expôs a um extermínio moral e cultural, que teve sequelas econômicas e demográficas. (NASCIMENTO, 2016).
Garantir os direitos mais básicos de imigrantes e refugiados é um desafio constante no Brasil – seja o direito ao trabalho decente, à dignidade, à vida. Nunca será demais reafirmar a importância da defesa dos Direitos Humanos em um país que lamentavelmente segue marcando a sua história na violência. O desafio brasileiro é imenso: será necessário incentivar a diversidade cidadã, combater a desigualdade e a intolerância, e ampliar projetos educacionais à altura do século XXI, cuja tarefa seja formar pessoas de seu tempo, de seu lugar concreto e abertas ao mundo. Sensíveis aos grandes desafios, entre os quais, atualmente, o sofrimento de refugiados de diversas partes do mundo.
Por fim, precisamos de uma indignação sem limites contra uma lógica colonial e racista que circula entre nós ditando quem deve morrer e quem pode viver. O massacre de tantas vidas negras, indígenas e imigrantes é absurdo e inaceitável. Os inúmeros protestos que espalharam-se pelo país, cobrando por justiça e denunciando a xenofobia e o racismo no caso de Moïse, nos “deixam o lembrete” de que os direitos conquistados nunca foram direitos dados, e os novos tempos pedem de todos nós, vigilância, atitude cidadã e muita esperança também. A sociedade civil tem dado mostras de que sabe se organizar e lutar por seus direitos.
Moïse, presente!
Notas
¹Aqui vale uma diferenciação importante: o mesmo gentílico “congolês” é usado para se referir a cidadãos da República Democrática do Congo e aos da República do Congo, países distintos, embora fronteiriços.
Para saber mais
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
PAIXÃO, Mayara. Congoleses como Moïse estão entre os imigrantes mais mal remunerados do país. Site Folha/Uol. São Paulo, 03 fev. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/02/congoleses-estao-entre-imigrantes-mais-mal-remunerados-no-brasil.shtml.
QUALIFICADOS, mas com trabalho braçal: como congoleses “descobrem racismo” no Brasil. Época Globo. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2022/02/qualificados-mas-com-trabalho-bracal-como-congoleses-descobrem-racismo-no-brasil.html
*Pedagogo e Doutor em Educação. Professor Adjunto da UFPB.
Edição: Heloisa de Sousa