aqui na Paraíba, um museu que lembra o combate à fome está sob ameaça de ser riscado do mapa.
Por Thiago Lima*
Os irlandeses, e os seus descendentes pelo mundo, comemoraram o dia de Saint Patrick, ou São Patrício, no dia 17 de março. No Brasil, é provável que simpatizantes da cultura irlandesa, nos centros mais urbanizados e nas escolas mais elitizadas, tenham festejado o dia vestidas de verde, fingindo serem duendes e outras figuras míticas da cultura celta, caçando trevos de quatro folhas ou potes de ouro no final de algum arco-íris imaginário. Comida e bebida verdes normalmente animam a festa e reforçam a cultura irlandesa. O que muita gente não sabe é que um evento nada festivo também é lembrado como parte da formação nacional irlandesa: a Grande Fome da Irlanda, que começa em 1845 e dura alguns anos, levando milhões de pessoas à morte e à migração forçada, principalmente em direção aos Estados Unidos e ao Canadá. Não é à toa que grandes festas de Saint Patrick ocorrem nestes países.
Em 1845, o Nordeste brasileiro foi atingido por uma grave seca e, portanto, Fome seguida de morte. Aqui, quando as pessoas fogem da Fome, são chamadas de retirantes. Não sei se há um nome específico para os irlandeses e irlandesas que tiveram que passar por uma migração forçada para não morrer de inanição. Como sabemos, nesses processos, muitas famílias são separadas, pessoas morrem pelo caminho e outras ficam sequeladas. Uma tragédia, que muitos povos preferem esquecer e muitas as lideranças políticas querem apagar, silenciar. Não é muito diferente no Brasil.
Acontece que a Grande Fome da Irlanda – também conhecida como a Grande Fome da Batata, por causa de uma praga que destruiu essas plantações – é uma das poucas Grandes Fomes lembradas e celebradas no mundo. A outra, de que tenho conhecimento, é a Grande Fome da Ucrânia, conhecida como Holodomor, de 1932-1933. Aliás, neste período houve também uma drástica Fome no Nordeste. No Ceará, para conter os retirantes que buscavam fugir da morte rumando para as grandes cidades, incluindo para Fortaleza, o governo construiu campos de concentração. Reeditou uma experiência ensaiada em 1915, experiência esta que foi retratada n’O Quinze, de Raquel de Queiroz.
Na Irlanda, e mesmo em outros países, há monumentos para lembrar a sua Grande Fome. Por que não temos algo assim no Brasil? Será que não devemos celebrar as dezenas de milhões de pessoas que sobreviveram a Fome? E será que não devemos honrar aqueles que pereceram, ou melhor, foram mortos pela Fome?
Este ponto é importante: não se morre de Fome. Morre-se, geralmente, porque algum grupo ou instituição impediu as pessoas de pegarem os alimentos e os comerem. Aí, a falta de alimento pode desencadear doenças (disenteria, pneumonia, beribéri etc) ou pode colocar as pessoas em situações de risco, que levam à morte: caminhar, como um retirante, navegar para os Estados Unidos ou Canadá, como um irlandês. Além disso, o Arthur do Val, vulgo, ou melhor, o vulgar Mamãe Falei, lembrou que as mulheres pobres (famintas) são “fáceis”. Para quem tem um mínimo de discernimento moral, isso significa que elas estão vulneráveis a homens bem alimentados e não pobres.
Voltando ao caso da Irlanda, os estudos históricos demonstram que os irlandeses morreram de Fome não porque necessariamente faltava comida. Claro, houve a peste da batata, mas, ao mesmo tempo, a Inglaterra – que fazia da Irlanda uma colônia sua – exportava alimentos da região para ganhar dinheiro. Isto é, os irlandeses precisaram morrer de fome para que alguns ingleses ganhassem dinheiro. Isso lembra o Brasil de hoje, no qual a Fome cresce junto com as exportações de commodities agrícolas? Lembra o Brasil de ontem?
Não foi apenas na Irlanda que os ingleses esfaimaram um povo dominado para ganhar dinheiro. Fizeram isso na Índia também. Milhões e milhões de indianos foram pauperizados para que que os ingleses pudessem exportar frutas, grãos, temperos e outras coisas, seja para ganhar dinheiro, seja para sustentar a luta na Primeira Guerra Mundial. Sinceramente, não sei se há um memorial ou monumento aos indianos que morreram de Fome e que sobreviveram a ela na Índia.
As pesquisas mais recentes apontam alguns motivos para que a rememoração, a celebração, ou mesmo o respeito às vítimas da Fome não sejam institucionalizadas no mundo inteiro, com raras exceções: vergonha de ser taxado como um faminto, um miserável; o esquecimento, como uma estratégia de levar a vida adiante, sufocando os horrores do passado; a falta de elementos materiais que façam uma ligação com a Fome. Afinal, a Fome é a ausência.
Entretanto, na minha perspectiva, o principal motivo para não haver datas nacionais ou monumentos comemorativos da Fome é porque eles, necessariamente, levariam à reflexão do porquê de a Fome existir. E, neste processo, certamente os culpados seriam descobertos, revelados. Como escrevi anteriormente, a Fome não aparece simplesmente. Não é a seca que faz a fome. Ela é causada pela negação do acesso à comida que, sim, existe em algum lugar. No caso dos irlandeses, é mais fácil entender que eles podem culpar os ingleses. A Inglaterra trucidou várias vezes os irlandeses ao longo da história. São, portanto, inimigos de longa data. Na Ucrânia, onde a Fome do Holodomor é sempre lembrada como um momento fundante da nação ucraniana, os causadores da Fome foram os Soviéticos. Nos dois casos o inimigo era estrangeiro. É mais fácil odiar o estrangeiro e, por este meio, construir a solidariedade nacional.
E no caso do Brasil? Quem causou – E QUEM CAUSA – as Grandes Fomes no Brasil? Os memoriais ajudam a identificar os responsáveis. Felizmente, o município de Senador Pompeu e o governo do estado do Ceará deram passos importantes nos últimos anos para institucionalizar a memorialização das últimas ruínas dos Campos de Concentração para retirantes. O tombamento dos locais onde os famintos eram aglomerados está ocorrendo, no entanto, como consequência de uma luta iniciada nos anos 1990 por movimentos sociais. Faz tempo, não faz? Porém, por que ela não começou antes? Por que esses Campos de Concentração foram esquecidos? Silenciados? Quem quiser conhecer a história dos Campos de Concentração no Ceará vai descobrir não apenas que o governo se negou a prover devido auxílio humanitário aos famintos, mas que também os confinou como bichos naqueles lugares que ficaram conhecidos com “Currais do Governo”.
Neste exato momento, aqui na Paraíba, um museu que lembra o combate à fome está sob ameaça de ser riscado do mapa. Ou melhor, de ser afogado pela construção de uma barragem. Trata-se do Memorial das Ligas Camponesas, na cidade de Sapé. O Memorial foi erguido na casa de Elizabeth Teixeira e João Pedro Teixeira, camponeses líderes das Ligas. Ele foi assassinado por organizar a luta pela terra. Ora, quem luta pela terra é porque está sob o risco constante de passar Fome, pela falta de acesso à terra. Negar a terra é negar a comida. É produzir a Fome. Não é essa uma enorme parte da história sertaneja? Quem negou – e nega – a terra ao povo sertanejo? A esposa de João Pedro, Elizabeth Teixeira, sobrevivente e viva ainda hoje, continuou a luta.
Poucos paraibanos conhecem a história das Ligas Camponesas e visitaram o seu memorial. Poucos brasileiros conhecem as ruínas dos Campos de Concentração dos flagelados da seca no Ceará. O Brasil carece de memória da Fome.
Por isso, devemos buscar, preservar e nutrir as memórias daqueles que padeceram, sobreviveram e lutaram contra a Fome. Festejar o São João é praticamente uma obrigação no Nordeste. Mas não deveríamos aproveitar este festejo junino, que muito gira em torno do milho, para lembrar daqueles que morreram pela falta dele, mesmo havendo tanta terra e tanta comida por aqui?
Uma coisa os judeus nos ensinaram: é preciso lembrar o holocausto, sempre, para que ele nunca mais ocorra. Os irlandeses e os ucranianos assim o fazem. E nós, vamos silenciar e apagar o nosso passado? Ou vamos conhecer os trilhos de nossa história – e reconhecer os engenheiros desses trilhos – para colocar nosso país em outro rumo? Um rumo em que ninguém mais precise passar Fome, em que ninguém mais precise sobreviver à Fome.
No dia 02 de abril, haverá um ato comemorativo para honrar os 60 anos do assassinato de João Pedro Teixeira. Ele ocorrerá às 14h, na Comunidade Tradicional de Barra das Antas, em Sapé/PB. É uma oportunidade de lembrar a Fome, aqueles que nela padeceram, e de honrar os guerreiros e guerreiras que lutaram contra ela.
*Professor e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB (fomeri.org)
Edição: Heloisa de Sousa