o Poder Público carrega uma visão de cidade classista
Por Rafael Faleiros de Padua*
Há alguns dias foi manchete nos jornais de João Pessoa que a Prefeitura iria destruir parte de uma pequena praça adjacente à quadra de Manaíra, com o argumento de que essa obra melhoraria a fluidez do tráfego de veículos. A população do lugar protestou e, com o apoio de representantes políticos e movimentos sociais, conseguiu na Justiça que a obra fosse paralisada. O que esse fato nos diz sobre a cidade em que vivemos hoje?
Em primeiro lugar, revela que há em nossas cidades um conflito entre o espaço para os carros e o espaço para as pessoas. É de já algum tempo que os carros vêm ganhando a disputa e vão conquistando mais espaço para a sua circulação pelo espaço urbano.
Outra questão que devemos levantar é que nessa cidade em que o carro disputa espaço com as pessoas, é uma cidade do carro, instrumento de locomoção individual que é produzida. Não é para o transporte coletivo, que também passa pelas mesmas ruas, mas é desprestigiado, mais uma mercadoria precária que um direito social, embora grande parte da população, a parcela mais pobre, dependa cotidianamente dele. Portanto, é uma parcela da sociedade que é privilegiada com os projetos de aumento de fluidez no trânsito, e não toda a sociedade, pois nem todos têm carros.
Sabemos que o transporte coletivo de ônibus está sucateado e é caro e não tem o devido cuidado nas preocupações dos dirigentes da cidade. Há pouco tempo começou-se a instalação de ciclovias na cidade, algo diverso da preocupação hegemônica que privilegia os carros, mas essa instalação parece que foi interrompida. Ou seja, os carros seguem capitaneando o modo como a cidade é produzida, impedindo outras formas de mobilidade, sobretudo o transporte coletivo, de ditar outras formas possíveis para a produção da cidade.
Mais um ponto que precisamos levantar a partir desse fato, é o que é o espaço público. Em sua constituição histórica, o espaço público teve o conteúdo de ser o lugar da política, do debate entre os cidadãos sobre os destinos de sua coletividade (mesmo que somente uma parte pequena da população fosse considerada cidadã), na cidade grega que criou as concepções de cidadania e democracia. Na cidade medieval (na Baixa Idade Média) a praça do mercado foi um lugar central para o desenvolvimento de relações urbanas, com a realização de uma infinidade de trocas entre os moradores e forasteiros, não somente de trocas comerciais. O espaço público carrega, portanto, esses conteúdos que vêm da história de ser um lugar onde se realizam os encontros, a reunião, a festa. Onde se expressam as diferenças e se encontram as diferenças, onde as manifestações acontecem, onde a sociedade ganha visibilidade.
Na sociedade brasileira, o espaço público, embora revele esses conteúdos também, é tomado pelo discurso hegemônico (elites, meios de comunicação de massa) como o lugar perigoso, violento, sujo, que se deve evitar, em contraposição aos espaços privados que seriam seguros, limpos e eficientes. O espaço público, em nossa formação histórica patrimonialista é tomado como o oposto do espaço privado, eles tendencialmente deixam de ter qualquer permeabilidade, necessária numa versão mais humanizada de vida urbana. Nesse sentido, cria-se, para as classes médias e classes mais enriquecidas, uma separação mais delimitada e definida entre o espaço privado, ultra-protegido e o espaço público, lugar a ser evitado. A lógica do condomínio fechado e do shopping center expressa essa visão de cidade. Uma vida cotidiana fragmentada, totalmente dependente da circulação de carro pela cidade.
O espaço público da cidade, sobretudo as ruas, de lugares essenciais para a realização da vida urbana, se torna, para essas classes, mais um lugar de passagem entre lugares privados. A praça, nessa visão de cidade, se torna um lugar descartável. Não é à toa que nas cidades brasileiras muitas praças deram lugar a ruas, avenidas e estacionamentos.
O espaço público, em especial praças ou lugares amplos, onde as pessoas podem se encontrar livremente sem a mediação de qualquer pagamento, é o lugar privilegiado da realização da vida urbana. Quando a Prefeitura, sem debater com os moradores do lugar, pretende destruir parte de uma praça, revela que o Poder Público carrega uma visão de cidade classista (da classe dominante, que tem carros), que privilegia o distanciamento das pessoas em suas esferas particulares da vida cotidiana, ampliando os espaços do não-corpo em detrimento de construção de novos espaços para o corpo, onde as pessoas de todas as classes sociais possam usar concretamente o espaço da cidade.
A luta pela praça da quadra de Manaíra revela que há conflitos no uso da cidade e na visão do que deve ser a cidade. Revela que há luta por espaços para que as pessoas, com seu corpo, usufruam do espaço da cidade. A cidade precisa de mais praças e mais quadras, e não de mais asfalto exclusivo para os carros. E os conflitos revelam muitos conteúdos do cidade e do espaço urbano hoje.
*Professor do Departamento de Geociências da UFPB, coordenador do Projeto de Extensão “Em busca do direito à cidade: ações e debates sobre as lutas urbanas” e participante do FERURB-PB
Edição: Heloisa de Sousa