'É a morada da alma, é onde habita o espírito, o parto é o momento de glória'
Em homenagem ao Abril Indígena, com datas alusivas no Brasil: 19 de abril - Dia do Indígena; 01 de abril - Dia da Abolição da Escravidão Indígena; e 22 de abril - Dia da Terra, convidamos para nossa coluna Maternância é (re)volução, Taisa Nunes, que atende pelo nome indígena Taí Tuwi'xawa, faz parte da etnia Cariri da Paraíba e reside na aldeia Barra de Gramame, na cidade de Conde no litoral sul da Paraíba.
Taisa é mestranda em Ciências Sociais pela UFCG (Universidade Federal de Campina Grande), Antropóloga e arte-educadora que estuda a etnicidade, gênero e medicina tradicional.
Taí é também autora independente do livro “Parindo Sementes - memórias poéticas de nós”, onde fala de seu processo de dor e cura como mãe que perdeu três bebês, e ainda, de sua conexão com a ancestralidade indígena e de ser portadora de um útero sagrado. Atualmente, integra a AMIP - Articulação de Mulheres Indígenas da Paraíba e o MOARA - Grupo de Mulheres Indígenas Tabajaras da Paraíba.
Maternância é (re)volução: O que é ser mulher e mãe indígena no Brasil?
Taisa Nunes: É a persistência na resistência. Como todos sabem ou deveriam saber, o Brasil, que nossos ancestrais sempre chamaram de Pindorama, esse país foi invadido. E sobre nós, foram colocadas diversas situações conflitantes, como a sexualização das mulheres indígenas, a violência contra nossos corpos, contra nossa cultura e nossa religião. Logo, ser mulher e mãe no Brasil é ser muito resistente, muito persistente, pois vivemos sob parâmetros machistas, patriarcais e coloniais, o tempo todo.
MER: Como está sendo a pandemia para as mães e comunidades indígenas?
TN: A pandemia tem sido um grande desafio, sobretudo para nós, mães indígenas, desafiante em vários aspectos: econômico, social, político. A pandemia escancarou as portas da desigualdade social e revelou cada vez mais as bases estruturais em que vivem os povos indígenas. Sob a base do capitalismo patriarcal ocidental e colonial em que vivemos, a pandemia também é um desafio em nossos territórios: pela falta de políticas públicas para os povos indígenas tradicionais, pela necessidade de reelaboração de diversas questões a se adequar ao universo tecnológico que a pandemia nos solicitou. Por outro lado, tivemos que construir pautas ainda mais fortes dentro do movimento indígena para que a gente não sucumba com a pandemia: em agosto de 2021 tivemos a ATL (Acampamento Terra Livre), A Marcha das Mulheres Indígenas e nesse momento está ocorrendo a ATL 2022, que vem com uma perspectiva de retomar o Brasil, demarcar os territórios e aldeiar a política.
MER: Segundo a ONU, as mulheres indígenas têm mais chances de ser estupradas que outras mulheres, sendo que mais de uma em cada três mulheres indígenas são estupradas ao longo da vida. Como o parto e o corpo da mulher é visto em sua cultura?
TN: a cultura indígena, o parto e o corpo da mulher são vistos como algo sagrado. É a morada da alma, é onde habita o espírito, o parto é o momento de glória, onde nós mulheres podemos trazer nossas sementes, nossos filhos. É a continuidade de nosso legado, são nossos sobrinhos, nossos netos e quem levará adiante nossa cultura ao futuro.
MER: Há no Brasil, índios urbanos e índios rurais. O que representa o território para a criação em tribo e convivência entre mulheres, homens e crianças?
TN: Gostaria de retificar que não nos sentimos representadas pelos termos índio e tribo. São termos que invisibilizam e tentam unificar a diversidade de somos. No lugar de Índio, pode ser usado: povo, etnia, indígena ou originário, já o termo tribo, pode ser substituído por território indígena ou aldeia indígena. O território tem papel central, fundamental em nossas lutas. A luta indígena é pela defesa do território, pela defesa da mãe terra e pela defesa do bem viver. O território é a nossa mãe, é de onde herdamos toda a memória ancestral, onde podemos fazer os usos de costumes e tradições. É a partir do território que nos alimentamos e alimentamos nossa família. É através do território que nós preservamos as águas, rios, animais e o ar puro. Nosso território é a nossa casa. E é por isso que reivindicamos a demarcação de terras e autonomia para os povos indígenas.
MER: Além da Marcha das Margaridas e Marchas das Mulheres Indígenas, uma das maiores lideranças indígenas e ambientais do país é Sônia Guajajara, que em 2018 tornou-se a primeira pré-candidata de origem indígena à presidência da república. Como você avalia a participação da mulher e mãe indígena na política e por que ainda é tão baixa no Brasil?
TN: Temos como referência a Sônia Guajajara, assim como outras mulheres como a Joênia Wapichana, Célia Xakriabá e outras. A participação da mulher indígena na política ainda é um desafio imenso, pois nosso país é estruturado em uma política patriarcal, genocida e cristã. Ainda assim é extremamente importante nossa participação, pois essas mulheres nos representam e defendem nossos direitos e nossos territórios. Nelas moram os mesmos fatores e objetivos que nós mulheres mães indígenas temos.
MER: Tivemos algum avanço no reconhecimento da cultura indígena no Brasil? Por que não conseguimos levar a história dos povos originários para as escolas? O que podemos fazer como cidadãs?
TN: A história indígena nas escolas ainda é muito rasa. Mesmo com a existência da Lei 11645 que garante no papel o ensino da história indígena nas escolas, não ocorre. E isso tem um propósito: quando nossa história não aparece, somos invisibilizados. Quando aparecemos, somos alvo. Nossa luta é pelo reconhecimento da cultura indigena, do resgate dos territórios que são nossos por direito. Ainda temos no Brasil uma cultura genocida e epistemicida (termo da antropologia que fala da tentativa de assassinar os fazeres e a cultura de uma etnia).
Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), estima-se 1,3 milhão de indígenas vivendo no Brasil até 2021. Segundo o Censo IBGE 2010, os mais de 305 povos indígenas dividem-se em 324.834 que vivem em cidades e 572.083 vivendo em áreas rurais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país. Lembrando que esses são dados de 11 anos atrás, espaço-tempo em que muita coisa mudou no Brasil.
*Entrevista e texto: Ana Rosa Domingues e Geysianne Felipe
Edição: Cida Alves