Solitária, de Eliana Alves Cruz, publicado em 2022, é uma dessas obras que denunciam, comovem
Por Surya Aaronovich Pombo de Barros
“Mulher negra, de 84 anos, é resgatada de trabalho escravo doméstico após 72 anos”. A idosa foi levada para a casa dos Mattos Maia quando tinha 12 anos e trabalhou para três gerações da família. Não recebia salário ou direitos trabalhistas, não podia receber visitas ou usar o telefone, não estudou, não tinha laços de amizade ou relacionamentos com outras pessoas, não circulava fora da casa, dormia em um sofá velho, em um espaço improvisado na antessala do quarto da empregadora, de quem era cuidadora mesmo sendo idosa como ela.
“Família manteve mulher em situação análoga à escravidão por 50 anos”. Também negra, a mulher de 89 anos foi resgatada pelo Ministério Público do Trabalho em Santos, litoral de São Paulo. Durante meio século, ela não recebeu salário, era impedida de guardar dinheiro em espécie, não tinha documentos e era proibida de solicitar novas vias destes, não podia sair para visitar sua família, sofria abusos físicos e verbais por parte das donas da casa.
“Abusos e 32 anos de escravidão: doméstica é resgatada de casa de pastor em Mossoró (RN)”. Chamada de “Maria” pela reportagem de fevereiro de 2022, ela foi levada com 16 anos para a casa de onde foi resgatada 32 anos depois. Não recebia salário, não tinha conta bancária, não estudou além dos anos iniciais do ensino primário, nunca tirou férias ou era usufruiu os finais de semana. Além das condições degradantes e das jornadas exaustivas, Maria sofreu assédio e abusos sexuais por dez anos, com a conivência da família do pastor.
“Sem salários, roubada e vítima de maus-tratos: doméstica recomeça vida após resgate de trabalho análogo à escravidão na BA”. Madalena Santiago da Silva, de 62 anos, trabalhou em situação análoga à escravidão desde os 8 anos de idade em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador/BA. Sem receber salários, ela era vítima de violência verbal e foi roubada pela família para quem trabalhava.
"Mulher é libertada após viver 38 anos em condições de escravidão em MG". É a partir de 2020, outra Madalena estampa a mesma denúncia na mídia. Desde os 8 anos de idade trabalhando na casa da família Milagres Rigueira, Madalena Gordiano foi impedida de brincar, de ir à escola, não tinha férias, finais de semana, contato com sua família, possibilidade de amizades ou laços afetivos, não recebeu salário ou direitos trabalhistas e ainda teve recursos roubados pela família que a empregava. Tinha 46 anos quando foi resgatada da situação de escravidão.
A reportagem sobre a primeira dessas vítimas, de 13 de maio de 2022, diz que “Dos resgatados pelos grupos especiais de fiscalização móvel desde o início do ano, cinco mulheres estavam em trabalho escravo doméstico nos Estados do Rio Grande do Sul, Paraíba, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Há outras ações em andamento”. Ou seja, em diferentes regiões do país, indivíduos de variadas gerações e classes sociais naturalizam a exploração de mulheres, em sua maioria negras, em um determinado tipo de função, o trabalho doméstico.
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Essas manchetes dizem respeito a casos extremos, de violências físicas e verbais, situações que envolvem crimes e que vêm sendo acompanhadas em diferentes âmbitos da justiça, como a do trabalho e a criminal. No entanto, o trabalho doméstico é uma questão social no Brasil (e em muitas partes do mundo) mesmo quando regulado e respeitando-se minimamente o direito das trabalhadoras.
Diversas áreas acadêmicas como história, serviço social, sociologia, antropologia, direito têm se dedicado a compreender esse fenômeno e a denunciar injustiças e iniquidades, apontando como essas questões relacionadas a essa função são articuladas com pertencimentos de raça, classe social e gênero. A ficção é outra possibilidade de lidarmos com essa realidade.
O livro Solitária, de Eliana Alves Cruz, publicado em 2022, é uma dessas obras que explicam, denunciam, comovem e chamam à transformação da sociedade. Autora de “Água de barrela” (2015), “O crime do cais do Valongo” (2018) e “Nada digo de ti, que em ti não veja” (2020), nos livros anteriores a escritora já denunciava a exploração da população negra e a herança da colonização e da escravidão na sociedade brasileira.
Em “Solitária”, Eliana Alves Cruz mostra como essa realidade permanece no século XXI, focando no “quartinho de empregada”, que pode ser uma cela solitária tal qual a de presídios ou o local em que a trabalhadora doméstica experimenta a solidão de estar em um ambiente hostil, em que é explorada, sugada, vítima de toda ordem de abusos e, ao mesmo tempo, a exploração acontece com a justificativa de que ela é “quase da família”. Tanto como substantivo quanto como adjetivo, o título é instigante, como toda a obra.
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O livro tem três protagonistas: Mabel, que foi criada na casa dos patrões de sua mãe e representa a mudança em curso, a partir das políticas públicas de expansão do ensino superior; Eunice, que trabalhou por duas décadas na casa da mesma família e por quem oscila sentimentos de raiva, de dívidas e de afeto; e, finalmente, os cômodos destinados a empregadas e empregados das famílias de posses.
Ele inicia com “ - Mãe… a senhora precisa se libertar dessas pessoas… A senhora não deve nada a elas, pelo contrário. Mãe… Sou eu, a Mabel, sua filha. Não tenha medo de encarar esse povo que nunca limpou a própria privada!” (p. 11). Em outro momento, ouvimos Eunice: “”Morrer é muito caro. Enterramos mamãe e com ela todas as nossas economias. Eu estava determinada a cumprir a promessa que fizera a ela de finalmente cuidar da minha vida. Isso significava mais que deixar de trabalhar em casa de família: eu precisava deixar de abrir mão de mim mesma para servir a outra pessoa” (p. 105). As vozes dessas mulheres sintetizam dores, revoltas e exigem mudança.
O romance passa pelo tema da exploração de subalternos, pela escravidão contemporânea, pelo racismo, machismo, as condições dos subúrbios, pelas cotas raciais na universidade, covid-19, pandemia e isolamento. A autora reverencia outras escritoras negras como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, François Ega, que já denunciaram a exploração da mulher negra em diversas situações, inclusive no emprego doméstico. Ela finaliza: “Não há paz enquanto se habita o tumultuado quarto de despejo - seja ele real, seja metafórico.
O silêncio da solitária é um estrondo, uma trovoada de desprezo que não para de soar na cabeça e na alma. Não à toa ela foi utilizada como forma de castigo. Apenas espíritos muito resistentes não se afetam pelo preterimento, e isso não é uma vantagem, porque não é humano. Foi com a consciência muito atenta a esse fato que Mabel e Eunice finalmente me deixaram chegar em suas vidas. Não o quartinho de despejo, mas o de descanso” (p. 158).
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Há muito material audiovisual sobre o tema. Sugiro algumas obras para complementar a reflexão trazida pelo livro Solitária, de Eliana Alves Cruz:
La Noire, Ousmane Sembène, França/Senegal, 1966
Babás, Consuelo Lins, Brasil, 2010
Domésticas, Gabriel Mascaro, Brasil, 2012
Quando meus pais não estão em casa, Anthony Chen, Cingapura, 2013
Muchachas, Juliana Fanjul, Suíça, 2015
Casa grande, Fellipe Barbosa, Brasil, 2015
Que horas ela volta? Anna Muylaert, Brasil, 2015
Mucamas, Coletivo Nós Madalenas, Brasil, 2015
Six windows in the desert - episódio “Sumiyati vai para o inferno?”, Meshal Aljaser, Arábia Saudita, 2015
O conto das três irmãs, Emin Alper, Turquia, 2019
Filhas de lavadeiras, Edileuza Penha de Souza, Brasil, 2021
São documentários, curtas e longas ficcionais de diferentes épocas, regiões do Brasil e países do mundo, espalhados em plataformas ou apresentados em festivais, que abordam o trabalho doméstico. Como mostram os exemplos que abrem esse texto, a realidade é mais aterrorizante que a ficção. Mas para elaborar essa realidade e, acima de tudo, desnaturalizá-la, podemos apelar para essas obras.
Edição: Cida Alves