O deslocamento tende a intensificar a fome e atingir principalmente a camada mais vulnerável
Por Anna Beatriz Lourenço e Alexandre Cesar Cunha Leite
O fenômeno das migrações e deslocamentos por motivações ambientais é uma realidade cotidiana para a população brasileira. Devido às condições climáticas, os deslocamentos internos aumentaram significativamente em 2019. O Internal Displacement Monitoring Center (IDMC) mensurou aproximadamente 200.000 deslocamentos internos em decorrência dos desastres ambientais que vem ocorrendo nos últimos anos no país. Consequentemente, o tema dos deslocados climáticos vai além da temática do aquecimento global ou da seca que atinge o sertão nordestino, por exemplo; é um tema que tangencia a insegurança alimentar, os desmatamentos, os direitos humanos e a problemática da desigualdade de gênero entre as pessoas deslocadas.
No século XX, o fluxo do êxodo rural (o que caracteriza a migração do campo para cidade) está associado, entre outros fatores, à ação da concentração latifundiária, à fatores ambientais e a busca por melhores condições de vida nos centros urbanos. Nas décadas de 1970 e 1980 ocorreram intensificação destes deslocamentos para as cidades, que levaram a desequilíbrios tais como a macrocefalia urbana, aos gargalos na saúde pública, o aumento da mão de obra empregada em atividades informais, a falta de saneamento básico e a elevação da população vivendo em miséria em situação de insegurança alimentar severa.
Um exemplo deste movimento populacional e suas consequências pode ser observado em uma parcela da população que habita (ou habitava) o semiárido nordestino, vivendo em condição precária, com dificuldades para realizar atividades econômicas que gerem renda suficiente e, que por forças as circunstâncias limitadoras, recorrem ao deslocamento como uma estratégia de sobrevivência diante de altos níveis de insegurança alimentar e nutricionais.
Dos motivos mais noticiados figura em primeiro plano a seca, mas é preciso compreender que a concentração de renda (e terras) tem um papel relevante entre os vetores que motivam o deslocamento para áreas urbanas. Os períodos de seca ou de estiagem prolongada intensificam o processo de desertificação do solo, aumentam os custos do cultivo e inviabilizam várias atividades rurais geradoras de renda.
Não por acaso a seca é um dos principais motivadores do aumento do fluxo migratório para outras regiões. Mas a concentração das propriedades causa uma expulsão da população nativa para outras áreas (urbanas, principalmente) buscando oportunidades. A ausência de meios adequados de financiamento para as atividades produtivas dos pequenos produtores é tão excludente quanto a concentração e as repercussões climáticas.
O êxodo dessas pessoas acarreta em problemas sociais que atingem direta e indiretamente toda sociedade. De imediato, o deslocamento causa desequilíbrio no mercado de trabalho e, provavelmente, estas pessoas tendem a integrar um mercado de trabalho informal ou elevar a oferta de mão-de-obra impactando as remunerações. A tendência é que criação de espaços de sobrevivência precarizados, desumanos, chamados de “bolsões de pobreza”, com pessoas vivendo marginalizadas, em condição miserável e, normalmente derive em situação vulnerável no que concerne à segurança alimentar e nutricional.
Ou seja, o processo de deslocamento tende a intensificar a fome e atingir principalmente a camada mais vulnerável da população. A interação entre mudanças climáticas, deslocamentos motivados por questões ambientais e a sua associação com problemas de insegurança alimentar precisa ser entendida e considerada como uma cadeia relacional. E tal aglutinamento de fatores devem gerar novos mapeamentos, análises da cadeia de eventos e, mais adiante, a criação de meios regulatórios mais abrangentes. Isso nos permitiria mapear áreas com altos níveis de êxodo e a relação com indicadores de insegurança alimentar (na origem e no destino) que possam gerar meios de atuação pública e de proteção jurídica quando identificados os deslocamentos internos.
Entretanto, o cerne da relação entre deslocamentos ambientais e insegurança alimentar, deve-se considerar o aquecimento global e suas consequências. E, o que se percebe nos anos mais recentes, especialmente sob o mandato de Jair Bolsonaro, é que o atual posicionamento do Governo Federal frente à problemática ambiental acirra os efeitos sobre a população, notadamente a população de baixa renda e em situação de vulnerabilidade.
Os impactos devastadores do aquecimento global atingem, principalmente, a Amazônia brasileira, o semiárido da região Nordeste, toda a área litorânea impactando diretamente na vida local e os ecossistemas ricos e vastos presentes no Brasil. As consequências da negligência do governo federal com políticas ambientais, tende a ter como resultado a elevação do nível do mar - colocando em risco as populações litorâneas -, estiagens prolongadas, altos níveis de precipitações e deslizamentos de terra em áreas de risco (exemplos atuais não faltam, basta ver os casos recentes em Pernambuco e no começo do ano na região serrana do Rio de Janeiro) e, a diminuição dos níveis de água doce. Isso impacta diretamente na agricultura, economia, saúde, além de aumentar os índices de mortalidade, fatores esses que impulsionam o deslocamento humano em âmbito doméstico.
No campo retórico do Governo, o Ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, propôs que até em 2030, o Brasil reduzirá a emissão de gases poluentes, sustentando que o Governo Federal irá reduzir as taxas de desmatamento ilegal. Contudo, os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), mostram que o desmatamento na Amazônia Legal Brasileira chegou ao alarmante número de 13.235 quilômetros quadrados entre agosto e julho de 2021 (AGÊNCIA BRASIL, 2021). Além do desmatamento, temos a elevação nos níveis do mar e a mudança das marés. O aumento do nível do mar é uma preocupação latente nos pesquisadores brasileiros devido a grande quantidade de pessoas que habitam a região costeira do país. Ainda, a falta de conscientização pública acerca dos bens naturais e a alta produção de gases, queima de combustíveis fósseis e aumento da poluição são indicadores de deterioração das condições de moradia, que tende a afetar mais duramente a população de baixa renda.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM), mostrou que em 2019, ao menos 240 deslocamentos no Brasil foram causados por erosão na costa. Novos casos devem ser registrados com a ocorrência de desastres impulsionados por questões de ordem climáticas. Impulsionados pois não são necessariamente gerados pelos eventos climáticos. Na maioria dos casos esses desastres são multifatoriais no que concerne a seus fatores geradores. E, com isso, as taxas de insegurança alimentar, consequentemente, aumentam. A camada mais pobre da população litorânea - de onde tiram seu sustento, muitas vezes, do mar – é a mais atingida com o cenário do deslocamento e desamparo dos governos locais e também do Governo Federal.
A falta de aparato estatal, as relações excludentes relativas ao meio rural (e sua dualidade) e a negligência do Estado brasileiro diante do cenário das mudanças climáticas, reforça o aumento de deslocamento das famílias por questões ambientais e, consequentemente, o aumento nos casos de insegurança alimentar.
As políticas públicas e programas assistenciais muitas vezes têm seu acesso dificultado ou carecem de um planejamento logístico efetivo para atender a população rural ou para alcançar grupos populacionais que careça de maior atenção dos órgãos governamentais. Por isto, o tema dos deslocados internos (no contexto ambiental) precisa estar presente na agenda governamental e na agenda do legislativo. O aparato jurídico é de suma importância para que este grupo populacional tenha os seus direitos assegurados. Hoje, devido à falta de adesão jurídica acerca dos refugiados ambientais - no âmbito doméstico e internacional - dificulta a ação dos órgãos competentes no combate à fome e proteção humanitária para os deslocados.
É necessário repensar a integração de políticas assistencialistas e de acolhimento para o combate à insegurança alimentar em todos os níveis, como o programa do Bolsa Família (extinto pelo atual governo Bolsonaro após 18 anos de funcionamento). Assim como é necessário repensar as políticas de geração de renda e emprego de forma ampla e inclusiva. Por fim, a necessidade de preencher o espaço jurídico, a formulação de estratégias, acumular informações e reunir especialistas para debater e políticas públicas efetivas e reformas nas leis no cerne das migrações é, antes de mais nada, uma forma de visibilizar o assunto do deslocamento e da fome no Brasil como um todo.
Edição: Cida Alves