Estamos vivendo essa expansão da lógica da mercadoria sobre o espaço de João Pessoa
Por Rafael Faleiros de Padua
O espaço da cidade, ao ser produzido e transformado enquanto mercadoria, ou prioritariamente enquanto mercadoria, provoca uma tendência de expulsões de moradores mais pobres de regiões que, para os setores econômicos hegemônicos, são estratégicas.
As ações estatais aprofundam essa tendência ao, nesse momento em que vivemos, adotarem políticas que agilizam o aprofundamento da terra urbana como uma mercadoria valorizada e cuja finalidade primordial é a valorização econômica. Esse é o interesse dos proprietários de terras e dos empresários do setor imobiliário, mas com certeza não é o interesse de grande parte da população, que quer o seu espaço para viver com sua família.
Estamos vivendo essa expansão da lógica da mercadoria sobre o espaço de João Pessoa no momento presente, com grandes projetos sendo implementados, com grandes somas de dinheiro sendo investidas tanto pela Prefeitura da cidade quanto pelo Governo do Estado. Pela Prefeitura, temos o Programa João Pessoa Sustentável, que tem entre uma de suas principais ações a construção de um parque linear no médio vale do Rio Jaguaribe, onde estão várias Comunidades instaladas há décadas. Para a construção desse parque está prevista a remoção de mais de 900 famílias dessas comunidades, com diferentes e precárias possibilidades de relocação.
Após a divulgação, pelo consórcio que executa o programa, dos mapas das casas que serão removidas por estarem em “área de risco”, a população das Comunidades está em alerta, pois questiona o grande número de casas marcadas para sair e também o critério pouco transparente dos estudos que basearam a definição do risco nesses lugares.
Na Comunidade São Rafael, por exemplo, uma das mais afetadas pelas remoções, foram definidas pelo programa que 216 casas deverão ser removidas, com argumentos de estariam em área de risco. Contestando esse número, as lideranças da Comunidade afirmam que seriam cerca de 92 casas as que estão realmente na área de risco; são as que estão mais próximas ao Rio Jaguaribe e mais expostas a enchentes nas épocas de chuvas intensas.
Mas a maior parte da Comunidade não está realmente em área de risco de acordo com o relato dos moradores e de sua história no lugar, o que vem sendo desconsiderado pelos técnicos-burocratas da Prefeitura e do consórcio. Esse procedimento demonstra que o real fundamento do programa não é a melhoria de vida da população, mas a retirada do maior número de moradores possível da Comunidade.
O Programa João Pessoa Sustentável é um programa realizado em conjunto entre a Prefeitura e o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), que faz parte de uma rubrica de financiamento do banco chamada Iniciativa Cidades Emergentes e Sustentáveis.
Nesse tipo de planejamento, embora haja nos documentos indicações de devem ser processos participativos com as populações atingidas, os lugares concretos da cidade são tomados como se fossem um papel em branco para que os técnicos da Prefeitura e das empresas que trabalham para o programa definam as transformações a serem realizadas no espaço.
A vida concreta das pessoas que há décadas vivem nessas Comunidades não é levada em consideração. É como se esses lugares não tivessem espessura histórica e vida concreta de uma parcela da classe trabalhadora que ali construiu seu espaço na cidade. Os lugares e seus moradores que os construíram e o transformaram ao longo do tempo, são tratados como coisas a serem deslocadas no espaço da cidade. Esse não reconhecimento da história concreta da vida dos moradores de Comunidades e a ameaça de expulsão do lugar é uma violação grave de direitos.
Quando a notícia de que a casa onde mora há décadas será removida para a construção do parque, moradores passam a viver em constante apreensão. Semanas atrás, em reunião na Defensoria Pública Estadual, o morador J., da Comunidade São Rafael, relatou sua tristeza de pensar que sua casa, que ele comprou de taipa há mais de 30 anos e que foi melhorando com seu próprio trabalho, onde vive com sua família, seria destruída.
Relatou que muitas vezes não consegue dormir pensando nessa ameaça de remoção e que moradores seus vizinhos estão com depressão por esse mesmo motivo. Disse ainda que sua casa nunca foi objeto de ocorrência da Defesa Civil, mesmo com chuvas intensas. Outro morador, C., relatou que em sua casa, onde vive há 40 anos, nunca entrou água. Segundo ele, sua casa, que está cerca de 120 metros da margem do Rio Jaguaribe, está definida como área de risco e que outras casas, mais próximas do Rio, não estão dentro da área de risco. C. relata ainda que sempre vem melhorando a casa com seu próprio trabalho e com os próprios ganhos.
Em outra reunião há semanas atrás, na Capela da Santíssima Trindade, na Comunidade São Rafael, a questão da ameaça foi debatida com padres, diáconos e a população da Comunidade. Nessa reunião outros relatos sobre a história da Comunidade expuseram ainda mais a espessura histórica da vida do lugar e o desrespeito com quem vem sendo tratada a população por parte dos projetos da Prefeitura. Havia um morador de 70 anos, nascido ali e que vive ali até hoje. Seu pai foi funcionário da Fazenda São Rafael, e a Comunidade foi formada por antigos trabalhadores dessa fazenda.
Através desse processo em curso, podemos identificar conflitos urbanos que revelam contradições do espaço e impulsionam novas lutas urbanas. Os conflitos são entre a Prefeitura (e os grupos econômicos que se beneficiarão com as obras segregadoras do Programa) e os moradores, que sofrem as ações dos processos que os ameaça de expulsão de seus lugares de vida.
No entanto, no processo de resistência da população, emerge a contradição fundamental que move esse processo, que é o avanço da lógica da mercadoria na produção da cidade e a resistência da população que não está totalmente integrada a essa lógica, mas que também produz a cidade e o seu lugar de vida na cidade e resiste para permanecer no seu lugar. Poderíamos definir essa contradição entre a cidade pensada e produzida pela lógica da mercadoria, que expulsa e segrega quem não pode pagar para usá-la e a cidade produzida e vivida como lugar da reprodução da vida, voltada para a apropriação.
Nesse sentido, as lutas urbanas são necessárias e fundamentais para que a cidade da reprodução da vida explicite para toda a sociedade os reais conteúdos destruidores da priorização da cidade como mercadoria e participe da construção de uma cidade da apropriação plena da vida.
Edição: Cida Alves