Paraíba

Coluna

É possível ignorar a fome no Brasil?

Imagem de perfil do Colunistaesd
Internet - Foto: Reprodução
A dor da fome, a fraqueza, a tontura, a desesperança, o sentimento é indescritível

Por Monalisa Lustosa Nascimento e Alexandre Cesar Cunha Leite*

“Comer pé, carcaça, aqui em casa tá sendo luxo quando tem. Nem ovo a gente pode comprar mais, porque tá caro!” Ionara Jesus, mulher, desempregada, mãe de quatro filhos, moradora em comunidade na cidade de São Paulo. A situação de Ionara não é isolada. Dona Ionara representa um enorme contingente de mulheres brasileiras que a cada dia lutam por sobrevida. Para sobreviver, em níveis muito abaixo do que se espera para qualquer pessoa. “Esses dias aqui em casa, para te falar a verdade, nem carcaça tô podendo comprar, porque não tá sobrando nem pra isso”. Situação semelhante é observada em comunidades em João Pessoa. São Rafael, Aratu, Santa Clara, Vitória, Muçomagro para citar poucas comunidades cujas pessoas estão diariamente lutando contra a fome. Famílias sem recursos para ter acesso a alimentação. 

Em 2021, quando a Rede Penssan divulgou o I VIGISAN (https://olheparaafome.com.br), os impactos da fome já eram visíveis e maltratavam uma grande parcela da população brasileira. Muito foi escrito e falado sobre a fome no Brasil. Ousaram associar a situação como uma consequência do momento pandêmico que vivenciávamos. Contudo, a fome no Brasil, que havia alcançado ganhos significativos anos anteriores, voltou a assombrar os brasileiros com o início dos governos conservadores de direita. A pauta social que logrou sucesso ao retirar o país do mapa da fome foi cruelmente convertida em discurso de gastos infrutíferos. A consequência: 19,1 milhões de pessoas passaram a figurar friamente nas estatísticas da fome. Voltamos a debater, discutir, analisar as causas e os impactos desse número alarmante. Voltamos a tratar dos montantes, dos dados. Contudo, vale o alerta, são todas pessoas vivendo o pior dos mundos. A dor da fome, a fraqueza, a tontura, a desesperança, o sentimento indescritível ao ver filhos e filhas pedindo comida sem que haja, pelas próprias condições, meios de saciar a fome deles e delas.  

Se em 2021, falávamos das 19,1 milhões de pessoas em estado desumano de fome, fruto de descasos, de ausência de ação governamental, do desmonte das políticas públicas sociais ligadas à saúde e alimentação; hoje, em 2022, são agora 33 milhões de corpos famintos! Estamos vendo o resultado do descaso ou do projeto. Afinal, havia uma plataforma política. Nela não havia a preocupação com a desigualdade, com a fome, com a pobreza, miséria, saúde, educação. Temos então o recrudescimento da fome. Mas a fome não voltou, sempre esteve no meio de nós, na nossa cara, na sua rua, na porta dos supermercados. A diferença é que agora ela grita, provavelmente incomoda. O grito agora, mais estridente, mais alto, tem um tom mais desesperado. E é provável que hoje até quem não queria escutar não tem meios de ignorar e fugir da realidade. A fome tem rosto, tem voz, tem lugar, tem cor, tem posição geográfica e fala até com quem se esforça para não a ver. 

Os números da nova pesquisa da Rede Penssan indicam que 41,3% dos brasileiros e brasileiras encontram-se em situação de segurança alimentar. 125,2 milhões de pessoas convivem com algum grau de insegurança alimentar. Dentre os 58,7% estão mães, pais e crianças, todos sendo arrastados pela violência que a fome lhes causa. Parcela significativa deste total são mulheres. O II VIGISAN, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil indica todas as nuances da fome no Brasil, destacando que a fome no campo, é ainda mais grave. As desigualdades regionais se fazem presente em todas as áreas de análise da fome, como renda, saúde, educação, saneamento e outras. Mas é incontornável a conclusão de que a fome no Brasil tem o rosto de mulher, de mulheres nordestinas e nortistas, pretas, pardas e indígenas. A narrativa de Dona Ionara Jesus, citada no início deste texto, não é um caso isolado. É apenas uma ilustração de inúmeros outros casos de semelhante gravidade. 

No período compreendido entre novembro de 2021 e abril de 2022 foram realizadas entrevistas pelo Instituto Vox Populi em uma parceria da Rede Penssan levantando dados sobre os domicílios das cinco regiões brasileiras, nos 26 Estados da Federação e Distrito Federal. Impressiona observar que em um intervalo de tempo pequeno entre as duas pesquisas, os dados revelam o profundo buraco em que o Brasil se encontra. O quadro de pobreza e miséria piorou consideravelmente, agravou o já catastrófico cenário da pandemia de Covid-19, e dobrou os resultados deletérios da miséria a que o país foi mergulhado. Intensificou a desigualdade, elevou o sofrimento dos invisíveis. 

A pesquisa revelou ainda que os domicílios chefiados por mulheres sofreram maior impacto do aumento da fome. Se em 2020 o percentual de mulheres em estado de fome ou insegurança alimentar grave era de 18,8%, com renda per capita menor que meio salário mínimo, em 2022, o número de mulheres na mesma situação subiu para 34,2%. São as mulheres, mães, chefes de família, líderes comunitárias, guerreando para sustentar uma casa com menos de meio salário mínimo per capita. No que concerne à raça, o resultado é o esperado, infelizmente: são as pretas, pardas, indígenas. Isto significa dizer que, neste momento em que você lê esta coluna, 6 em casa 10 lares comandados por mulheres estão passando fome. E, também como dito no começo deste texto, você saiba quem são essas mulheres, pois provavelmente, estão perto de você. Essas são as guerreiras criadas do resultado da decisão política de 2016 e 2018. 

A mesma pesquisa indicou que a fome está mais presente nos lares com crianças. Segundo a Rede Penssan (2022), a fome dobrou nas casas onde as famílias possuem crianças menores de 10 anos. O quadro piora quando são lares onde as mães são pretas e pardas, em sua maioria desempregadas, com baixo acesso a escolaridade e possuíam crianças de até 3 anos. Também é necessário recordar que essa população atendida por políticas públicas sociais amplas viu seus benefícios atacados e retirados pelo governo eleito em 2018, e, claro, responsabilidade compartilhada pelos eleitores que elegeram o projeto. A extinção do Consea, a descontinuidade de políticas voltadas à população em área rural, o Bolsa-Família (precariamente, substituído pelo insuficiente e pouco abrangente, Auxílio Brasil), a redução efetiva da rede de proteção social entre outros exemplos são decisões políticas inicias em 2016 e acentuadas em 2019. Decisões que resultam em fome, em desigualdade, em violência contra essas pessoas. Violência é fluxo. Deve entender que a situação de empobrecimento tende a gerar reflexos na sociedade. Logo, deve-se compreender que a violência deve aumentar em todos os sentidos. E, para reclamar contra a violência, há que se ter a consciência tranquila de que você não foi responsável por eleger e sancionar este projeto. Não serão os dedos apontados em forma de arma que reduzirão a violência.

Submeter pessoas à violência da fome é jogá-las na desesperança. E, diante deste cenário, há que se estar preparado para as consequências da escolha feita. Porque como pedir que essas pessoas entendam a situação de tantos poucos com tanto e muitos outros tantos com nada. Afinal de contas, o Brasil é um dos maiores produtores alimentares do mundo! Terra não falta. Não sofremos a escassez de produção alimentar. Logo, essas pessoas passam fome em um país que bate recorde ano após ano na produção agropecuária. A guerra vivida e combatida pelos famintos, desnutridos, desesperançosos é para não sucumbir no meio da rua. Peleja contra um governo e uma parcela da população que é insensível ao sofrimento e à morte de muitos de maneira cruel. São muitos pedindo comida. São muito chorando e implorando para que sejam vistos, pelas pessoas, e, especialmente pelo governo. Não há mais como ignorar. 

Monalisa Lustosa Nascimento - Mestranda em Desenvolvimento Territorial na America Latina e Caribe – UNESP.

Alexandre Cesar Cunha Leite - Professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pesquisador do FOMERI (UFPB) e criador do SACIAR (@_saciar).

 

 

 

Edição: Cida Alves