Paraíba

Coluna

A cidade, os conflitos e a potência das lutas sociais

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Durante ação pela renovação da ADPF 828 em João Pessoa. - Reprodução
Com a luta coletiva ocupando espaços públicos, a cidade e a sociedade seriam mais democráticas

Por Rafael Faleiros de Padua


O conteúdo concreto da cidade é a vida real de seus moradores. É o vivido a partir da casa, lugar central da vida, passando pelo entorno da casa, pelos espaços habituais de sociabilidade, pelos percursos cotidianos percorridos para se ir aos lugares de trabalho, de compras, de diversão. A cidade é espaço construído e, ao mesmo tempo, um espaço em constante produção pelos moradores que nela vivem e que a produzem todos os dias. É prioritariamente, portanto, o lugar da vida dos seus moradores. No entanto, algumas mediações do modo de reprodução social hegemônico atravessam o espaço da vida das pessoas. Ao se constituir como propriedade privada, o espaço da vida, no capitalismo, se torna mercadoria, cuja mediação para o seu uso é um montante de dinheiro. Desenvolve-se aí uma contradição fundamental que explica a cidade no capitalismo, que é o fato de que o espaço urbano é o lugar prioritário da vida dos moradores, mas nem todos os moradores têm recursos monetários de acessar a propriedade privada da terra na cidade.
 
Impõe-se violentamente, tanto através dos planejamentos estatais, como através das ações dos sujeitos econômicos hegemônicos da produção do espaço, o fato de que a cidade é uma mercadoria e cada vez mais é produzida enquanto mercadoria, o que segrega cada vez mais os grupos sociais que não podem participar do mercado de moradias, de terrenos, ou pagar pela mobilidade e pelo uso de equipamentos e até do próprio espaço público da cidade, já que tudo passa tendencialmente pela mediação da lógica da mercadoria. No entanto a contradição entre a cidade do valor de troca e o uso se apresenta com força na cidade contemporânea, pois a cidade também é uma obra da civilização; portanto, ela não é totalmente redutível à lógica da mercadoria, sendo obra também dos que participam parcialmente ou precariamente do mercado, ela é também produzida pelos trabalhadores pobres que constroem suas moradias e realizam sua vida nas brechas do espaço reduzido a propriedade privada da terra.
 
As ocupações e todas as variações de autoconstruções extremamente evidentes nas cidades brasileiras revelam ao mesmo tempo a dificuldade de grande parcela da população trabalhadora de acessar o direito à moradia, conquistado com o próprio trabalho da família, evidenciando a extrema desigualdade social em sua expressão espacial da segregação; ao mesmo tempo revela uma história concreta de conquista de direitos básicos que o próprio Estado não garantiu às parcelas mais pobres das classes trabalhadoras, revelando a obra possível de famílias que concretamente, com o próprio trabalho, produziram e produzem a cidade e seu lugar na cidade. Expressam dessa forma a contradição entre a cidade como o lugar da reprodução concreta da vida em constante conflito com a cidade produzida como lugar da reprodução econômica de capitais, que tem voracidade por mais espaço para seu avanço. À medida que o espaço se torna mais estratégico para as produções econômicas, mais contraditório ele se torna e mais conflitos e lutas pelo espaço se colocam na cidade. É o que está ocorrendo hoje em João Pessoa, onde a prefeitura, alinhada aos interesses dos setores econômicos hegemônicos (setor imobiliário e setor do turismo), procura encaminhar projetos com grande impacto sobre grandes parcelas empobrecidas da população para privilegiar o avanço de uma cidade cada vez mais mercantilizada e mediada pela lógica da mercadoria.

Nesse momento atual, a luta dos moradores das Comunidades do chamado Complexo Beira-Rio pela revisão do Programa João Pessoa Sustentável é uma expressão muito importante da luta por uma cidade da vida contra a cidade desumana que quer ser imposta. Os moradores, cada vez mais estão se informando dos propósitos segregadores do programa e exigindo a sua revisão no sentido de que esse programa atue no sentido de resolver problemas históricos das Comunidades e não violar seus direitos conquistados duramente com seu próprio trabalho. Através da mediação de movimentos sociais, de associações de moradores das Comunidades, de lideranças comunitárias, além de pesquisadores das universidades públicas, os moradores estão se colocando diretamente em luta pelo seu espaço na cidade. Ao se insurgirem contra o planejamento da prefeitura e mostrarem para toda a sociedade o que está em jogo nesse processo, revelam conteúdos importantes da produção do espaço urbano hoje. Revelam que, para além da cidade como mercadoria, há a cidade que é produzida para a reprodução da vida e que reproduz formas de sociabilidade comunitárias que não estão totalmente reduzidas à pobreza do avanço do individualismo difundido pela ideologia neoliberal que fundamenta a produção hegemônica do espaço e o planejamento estatal hoje. Ao se colocarem coletivamente em luta por suas Comunidades, os moradores também fortalecem entre si um processo de identidade e de construção de conhecimento em ato sobre a produção de seu lugar da vida e sobre o modo como o espaço da cidade é produzido e reproduzido. Quando os moradores participam de assembleias, quando debatem projetos que têm impactos nos seus lugares, quando se reconhecem em uma luta coletiva, dá-se uma nova dimensão à política como ato da vida cotidiana, com sua participação direta, com seus corpos em atuação na rua ou nos espaços de negociação, reivindicando e questionando as decisões que afetam a todos(as) os(as) moradores(as) da cidade e, sobretudo, a eles próprios, impactados diretamente pelo planejamento estatal.
 
Uma nova concepção de cidade, como lugar de luta permanente, e de política, como atuação direta e coletiva no espaço público em busca de direitos sociais, pode surgir nesse processo. Outro elemento é revelado também nesse contexto, que é a dimensão de que a cidade é um lugar de conflitos entre diferentes classes e interesses de classes e que, para as classes trabalhadoras mais pobres que mais sofrem os impactos dos projetos estatais e econômicos hegemônicos, é fundamental se colocar ativamente em luta para a conquista de direitos sociais. Evidencia-se que a cidadania abstrata que se contenta em ter documentos dizendo que se é cidadão e portanto, teoricamente portador de direitos, e votar periodicamente em candidatos políticos que representam a população nas instâncias políticas de decisão, é pouco para garantir direitos. É evidente que votar em candidatos(as) que realmente representam a população é fundamental para avanços sociais. Mas a luta coletiva, nos movimentos sociais e associações de moradores também é um ato que deve ser contínuo, como exercício de uma política mais direta. Com mais movimentos de luta coletiva ocupando os espaços públicos, a cidade e a sociedade com certeza seriam (serão!) mais democráticas. 

Edição: Polyanna Gomes