O combate à fome também deve ser uma luta informacional, nas redes sociais
Em meio a corrida eleitoral de 2022, a sociedade brasileira encara, novamente, os seus principais problemas civilizacionais, que são latentes desde a era colonial: especialmente a fome. O fenômeno da fome, como já dizia Josué de Castro (1946), que foi médico e um grande pensador brasileiro do século XX, vai muito além de uma sensação biológica do vazio no estômago, é reflexo da organização social e do modus vivendi de determinada sociedade. Em outras palavras, toda a sociedade é composta por uma parcela de famintos para garantir a manutenção do poder e as formas de dominação. Entretanto, partindo do pressuposto de que as sociedades são organismos vivos em constante interação, a fome como qualquer outro problema público ganha novas formas e, consequentemente, desperta a necessidade de encontrar instrumentos efetivos de combate.
A fome pode ser melhor compreendida por meio de dois conceitos concebidos por Josué de Castro: a fome aparente e a fome oculta. A fome aparente é quando o sujeito não consegue se alimentar, o que o leva para um quadro rápido de morte: algo que pode ser tão extremo quanto a inanição. Já a fome oculta se impõe de forma silenciosa ao longo do tempo, como uma dieta com baixíssimo valor micronutricional, que, além de desenvolver uma série de Doenças Crônicas não-Transmissíveis (DCNTs), como a obesidade, também compromete o exercício da cidadania e, indiretamente, leva a morte cívica e biológica. Portanto, há um contrassenso pouco esclarecido na grande opinião pública sobre um traço latente da realidade brasileira: isto é, muitas vezes a pessoa é obesa e passa fome. A fome não está presente apenas na vida das pessoas em estado de inanição (fome aparente). Àquela imagem vendida pelo Banco Mundial de uma criança em algum país africano ou no interior do nordeste extremamente magra. Atualmente, de acordo com o Atlas das Situações Alimentares: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo (2021), é notável a proliferação da fome em todo o território nacional.
Para olhar os números, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) publicou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Houve um crescimento da fome de 16% para 20,5% e do risco de fome de 20,7% para 34,7% (mais de 50% da população nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, somando o crescimento da fome e risco de fome, estão em situação de insegurança alimentar). Outra perspectiva fundamental está na realidade do campo e das cidades: ou seja, enquanto 19,4% dos domicílios em áreas urbanas estão em situação de fome, são 27% dos domicílios no campo. Já na quantidade total de pessoas, 35,2 milhões estão nas áreas urbanas e 8,2 milhões nas áreas rurais. O crescimento da fome, somado ao risco de fome, em valores percentuais é maior na região Norte, Nordeste e Centro-Oeste, mas no número absoluto são 58 milhões de cidadãos que passam fome ou estão em risco nas regiões Sul e Sudeste, tendo em vista a concentração populacional (ver maiores detalhes no Atlas das Situações Alimentares, p. 104, 2021).
Impossível não levantar inúmeras perguntas com dados tão dramáticos. Contudo, o esforço deste breve ensaio é gerar uma reflexão a partir do ponto de vista da comunicação sobre um dos principais problemas da vida nacional, no contexto eleitoral. Ninguém gosta de falar que está com fome e, muitas vezes, as pessoas estão tão confusas com a dificuldade de viver que a fome é mais um problema a ser resolvido, a famosa frase popular: “vender o almoço pra comprar a janta”. Como a fome é um traço presente na história do povo brasileiro, torna-se ainda mais difícil conscientizar a população sobre tal problema, seja para pressionar os governos e empresas ou buscar formas alternativas de vida, ou mesmo para gerar um sentimento de solidariedade e coletividade. Importante lembrar que, no auge da revolução industrial inglesa, se o empresário pagasse mais de um salário ao empregado, ou cesta básica, poderia ser preso ou punido pelo Estado. Tal espírito ainda está presente nos dias atuais.
As questões ocultas, que na verdade não são bem ocultas de acordo com os dados apresentados anteriormente, impõem um maior desafio para a formulação de políticas públicas e estratégias de conscientização em massa. Ninguém quer ver no Whatsapp dados estatísticos sobre a realidade social do país, assim como ninguém quer colocar nas redes sociais que está em situação de fome ou com pouca grana para comprar comida. Do outro lado, as classes dominantes e parcela da classe média também não vão fazer um stories no Instagram dizendo que a empregada está passando necessidade ou postar uma foto abraçando o entregador do Ifood, que ao mesmo tempo que entrega comida, passa fome ao não conseguir fazer pelo menos três refeições ao dia. Sob este ponto de vista, a Luta de classe nunca esteve tão viva.
Finalmente, mesmo com as inúmeras incapacidades na área da Segurança Alimentar e aumento da fome na gestão Bolsonaro (2018-), uma parcela significativa de seu eleitorado vive com fome oculta. Com base na realidade histórica e objetiva, o campo progressista sempre promoveu mudanças reais em problemas como a fome quando assumiram o poder. Entretanto, cada vez mais, a extrema-direita encontra formas de se apropriar de tais conquistas, sobretudo a partir das estratégias de comunicação. Um exemplo é a propaganda do Auxílio Brasil na campanha de Bolsonaro.
Na sociedade dos algoritmos, não adianta apenas realizar as mudanças estruturantes necessárias e urgentes. É preciso saber comunicá-las. Especialmente com o avanço da precarização nas relações de trabalho, empobrecimento material do povo brasileiro e digitalização do consumo em massa de informações. Isso quer dizer que se a fome oculta é um problema político, e a política está cada vez mais dependente do jogo oculto dos algoritmos, o combate à fome também deve ser uma luta informacional, nas redes sociais. É importante conquistar o voto daqueles que têm fome oculta e ao mesmo tempo entender que esta condição, atualmente, advém das campanhas ocultas que chegam através dos smartphones.
Rafael Neves Fonseca. Consultor em monitoramento digital para governos. Membro do grupo de pesquisa FomeRI (Fome e Relações Internacionais). Mestre em Gestão Pública e Cooperação Internacional (UFPB - Universidade Federal da Paraíba) e graduado em Relações Internacionais (ESPM/SP - Escola Superior de Propaganda e Marketing).
Edição: Polyanna Gomes