Zé do Caroço, afrobrasileiro, preto, sonha em ser doutor e presidente, 10 anos
Por Eduardo Araújo*
Está nascendo um novo líder
No morro do Pau da Bandeira
Está nascendo um novo líder
No morro do Pau da Bandeira
Lelelelê lelelelelelelelelê. (Leci Brandão, 1978)
O ano é 1978, Leci Brandão compõe a música Zé do Caroço, apesar de uma carreira consolidada, a gravadora não aceitou a inclusão desta faixa em seus álbuns, de toda forma, a música se tornou um sucesso nas rodas de pagode e nos shows da cantora, finalmente, em 1985, no álbum Leci Brandão, produzido por uma nova gravadora (Copacabana) a canção ganhou sua versão de estúdio.
A música se tornou um hino - louvação, foi regravada por inúmeros artistas (Grupo Revelação, Art Popular, Seu Jorge e Anitta), em 2006 ganhou uma versão ao vivo da própria Leci Brandão no álbum Canções Afirmativas.
Zé do Caroço narra uma história do comunicador Mendes, morador do Morro do Pau da Bandeira - Vila Isabel (Rio de Janeiro) que instalou um sistema de som na laje de sua casa com o intuito de transmitir notícias, eventos e outros para população, o apelido de Mendes, Zé do Caroço, virou o personagem da música, conta Leci Brandão.
O fato que inspirou a composição foi a denúncia às forças repressivas da época do sistema de alto falantes, o B.O. foi criado pela esposa de um militar que morava na Vila Isabel e não suportava aquele meio de comunicação popular, vale lembrar, para que nunca mais se esqueça e nem aconteça, que naquele instante o ditador de plantão era o Gen. Ernesto Geisel.
Nos anos de 1970, a jovem estudante de direito Leci Brandão transitou em Festivais Universitários de Música, Terreiros, Barracão da Mangueira, Grupo de Teatro Opinião, gravou seus primeiros compactos e álbuns, era uma figura presente no circuito carioca de agitação cultural, política e social. É considerada uma das primeiras compositoras de samba enredo, pode ser que seja ou não mas sem dúvida é primeira assumidamente lésbica.
Naquele mesmo instante o Movimento Negro Unificado era consolidado enquanto referência de articulação das diversas formas de resistências negras no Brasil e pelo caráter nacional que atingiu, podemos dizer que foi o primeiro movimento social negro afrobrasileiro de capilaridade internacional.
As agendas da cultura, das artes, das religiões de matriz afrobrasileira, dos espaços políticos (institucionais ou não), da academia, dos institutos e outros não seriam mais as mesmas, desde então, as urgências estavam dadas: Enegrecer o Brasil, combater o racismo, o sexismo, denunciar a falsa abolição do 13 de maio.
O tom estava dado, estava nascendo uma nova líder, duas novas lideranças, três novas militantes, quatro novas intelectuais, cinco novos terreiros, seis novas músicas, sete novos artistas, oito novos quilombos, nove novas afroperspectivas, e assim por diante. Leci Brandão, em 2010, se filiou ao PCdoB, foi eleita (2010) e reeleita (2014) Deputada Estadual em São Paulo, entrar na política institucional, promover debates, disputar as narrativas, projetar políticas públicas, denunciar os racismos e promulgar leis, eis um dos caminhos.
Outro Zé do Caroço, nascido no Morro do Pau da Bandeira, escutava pelo alto falante que agora era : Diretas Já ! Escutou também que o Brasil perdeu para Itália por 3 x 1 na Copa de 1982. Ouviu dizer que Abdias Nascimento era Deputado e Benedita da Silva Constituinte − aquela amiga da mãe dele − com dez anos de idade comentaram com ele que tinha uma nova Constituição, essa era a tal da “ Carta Cidadã”.
Nessa altura da vida, Zé tinha largado os estudos, filho de diarista retirante nordestina com pedreiro de nome incerto, ainda não era “do Caroço”, apenas Zé, algumas vezes era chamado de Zé do Pau da Bandeira. Aos domingos ia à praia de Copacabana pegar jacaré, após uma semana cuidando dos irmãos e fazendo pequenos serviços para os mais velhos, “pega uma carteira de hollywood maço em Seu Tonho pra galera, pode ficar com o troco!”.
De serviço em serviço, de troco em troco, foi ganhando a confiança da geral, para Zé não tinha tempo ruim, no morro ou no asfalto era só pedir algo que ele desenrolava.
Em 1992 pediram para Zé ir buscar uma encomenda na Barra da Tijuca, lá ia ele rápido tal qual Robson Caetano, quando escutou : “Zé ! Zé ! Tem uma tal de ECO - 92 por aí, cheio de milico, não vacila em lugar de rico”.
A velocidade de um “crioulo” nas ruas do Brasil é uma questão ontológica e Zé sabia disso, mesmo sem nunca descobrir o que significava a expressão ontológica. A conta mental era complexa, se andasse tranquilamente seria visto como vagabundo, se corresse seria perseguindo enquanto ladrão, se estivesse no busão com uma mochila poderia rodar fácil mas dava para passar por estudante, se pegasse o busão sem nada poderia passar sem ser percebido, afinal de contas nem tão “crioulo”, porém, pensou que mesmo assim, numa terça-feira um “moreno” de bobeira na Barra iria chamar atenção.
Zé não sabia qual era a encomenda, arriscou levar uma mochila e uma camisa do CIEP, tirou as guias de Óxossi que de acordo com Tia era para dar fartura e proteção, mas no asfalto sabia que era tudo ao contrário.
Chegou tranquilo na Barra após 02 conduções e uma boa caminhada, sem correr e também sem andar devagar, olhava ali o pessoal surfando e voando nas asas deltas, pensava, “só quem nasce no morro fica pensando essas coisas de correr ou andar tranquilo”, ali estavam “todas de bundinha de fora”, a “fumaça do veneno da lata” e o “dragão tatuado no braço”, será que dava para morar por ali para sempre? Sorria.
Aquele corpo com uma mochila nas costas e sem camisa, foi rapidamente identificado enquanto um personagem não habitual da região, “Moleque, moleque, encosta aí , mochila no chão, mão na cabeça … não olha para mim, pro chão, é da CDD?”.
Muita informação pra Zé, muita arma, muito toque, barulho de sirene e olhares brancos avermelhados, quando deu por si já estava no camburão, na triagem, na FEBEM, apenas repetia: “Sou de menor, sou estudante, a parada não era minha…”, repetiu a mesma frase diversas vezes, apanhou outras tantas, tapa na cara, chute nos ovos e tudo de novo, até que no final da tarde entregou geral, até o que não sabia.
Zé do Pau da Bandeira pegou 03 anos de FEBEM, tinham dito para ele, “fica peixe, em 02 meses tu saí daqui”, saiu com 17 anos, já era Zé do Caroço, líder de pavilhão, um pacificador de crises, levava tudo na palavra, sem arma ou covardia.
A infância, adolescência ficaram para trás, até a moeda não era a mesma, tudo era no Real, a mãe apesar de o querer bem, não poderia recebê-lo em casa, agora estava casada com Pastor Luiz e seria uma vergonha na comunidade da Igreja ter um filho bandido.
Zé do Caroço buscou abrigo em outros morros, favelas e bairros, o coração sempre estava no Morro do Pau da Bandeira, os olhos e ouvidos nos ensaios/desfiles da Vila Isabel. Nas andanças pelas zonas do Rio era festejado, mantinha uma rede de “prestadores de serviços” que fazia delivery de encomendas antes mesmo da palavra delivery existir, nunca entrava em confusão por disputa por ponto/território, “meu serviço não tempo ponto, o que faço é facilitar conexões do morro com asfalto”, se orgulhava.
Após 03 anos nas ruas percebia que os tempos e as gerações estavam mudando rapidamente, falavam que tinha uma tal de internet, agora era a vez dos celulares e as armas cada vez mais pesadas circulando nas mãos de pessoas cada vez mais jovens. Sentia que as polícias quando não eram parceiras agiam em tropa e para elite, as balas perdidas sempre achavam um alvo negro no morro, falavam até de um tal de Caveirão. Viu um presidente ser reeleito, era informado, sabia que era um doutor, sociólogo, presidente FHC, ria quando dizia para os chegados : “Agora deu dois THC”.
No final daquele ano (1998) Zé do Caroço resolveu visitar o Morro do Pau da Bandeira, não conseguia ficar mais uma festa de natal longe da mãe, comprou um presente caro, ensaiou a conversa com o Pastor, pensava, se era um homem do Senhor ia entender os caminhos da vida.
Zé não queria mais aquela vida agitada, fazia as contas de que em uns 02 ou 03 anos poderia comprar um apartamento na Barra, alugar um quiosque para os irmãos trabalharem e viver de renda, ia aprender a surfar e voar.
Não conseguiu chegar na casa mãe, quando estacionou o carro para seguir andando foi abordado por um menino de uns 10 anos, se viu nele, sorriu, antes de falar algo, apenas ouviu : “Aqui é Zé Pequeno, porra! Cagoeta dos caralhos”, seis tiros, gritaria e som abafado, viu a vida passar num milésimo de segundo , ainda conseguiu cantarolar : Lelelelê lelelelelelelelelê.
Zé do Caroço (2012 - atual)
“ O menino nasceu, o menino nasceu, pretinho, lindo!”, berrava Dona Lourdes da janela de casa no Morro do Pau da Bandeira, a família estava eufórica, era o primeiro neto de Dona Lourdes e do Seu Martinho, o primeiro filho de sua filha Leci com Jamelão, o nome da cria estava definido : José Martinho. As escadarias e os botecos foram tomados pela alegria de Dona Lourdes, o povo cantava : “Está nascendo um novo líder …”
O ano de 2012 estava sendo um ano de desafios, como em todos os anos são mas com grandes conquistas, Leci tinha terminado em 2010, com apenas 23 anos, o curso de Jornalismo na UERJ − que criou as ações afirmativas/cotas em 2001 – e conseguiu o primeiro emprego com carteira assinada, pensava em fazer um mestrado mas iria adiar um pouco o sonho para ter o primeiro filho, morava com Jamelão − cotista do curso de Ciências Sociais na UERJ − desde 2010 em um quitinete bem arrumadinho ali mesmo na Vila.
Jamelão estava com uns 27 anos, o curso estava indo bem mas tinha que dividir o tempo dos estudos com o trabalho numa concessionária de motos, nas obrigações do terreiro e nas fases do ano das atividades da Vila. O sonho era ser antropólogo e realizar etnografias sobre as raízes do samba na Bahia, queria ser Ogan e mestre salas. No momento estava feliz em louvar Orí todos os dias, ser parte da comissão de frente na Escola e ser Pai.
Naquele mesmo ano foi aprovado a Lei de “Cotas” (2012) que regulou o Estatuto da Igualdade Racial (2010) sobre o acesso de pessoas negras às universidades, a nova lei vinha com um apelo forte de consolidação das ações afirmativas para pessoas negras (pretas e pardas - IBGE) nas universidades e seria a base para atingir pouco tempo depois as vagas nos concursos públicos e nas empresas privadas. O ano de 2022 seria o momento de avaliação da implementação das “cotas raciais” e olhando de 2012 uma década parecia uma eternidade com muitos caminhos abertos para enfrentamento aos racismos no Brasil.
José Martinho todo dia estava no Morro do Pau da Bandeira na casa dos avós, teve uma primeira infância tranquila, não sentiu o impacto, em 2014, da derrota do Brasil por 7 x 1 pra Alemanha, não percebeu que naqueles tempos os xingamentos misóginos eram direcionados à Presidenta Dilma Rousseff. Não tinha idade para saber que um candidato a presidente, tucano de Minas Gerais, que morava no Rio de Janeiro, tentou “melar” as eleições (2014) esticando o período eleitoral até 2015/16. Não foi atingido pelas palavras de um Deputado Federal carioca que faria homenagem a um torturador para golpear o Brasil, nem o outro que disse: “Que Deus tenha misericórdia dessa nação, voto sim!”.
Nas festas da quadra da Vila Isabel, desde pequeno, José Martinho ganhou o apelido de Zé do Caroço Terceiro, a história era que ele parava de chorar quando a música tocava na roda de pagode e que ao começar a falar sempre parecia uma mistura de locutor no ritmo do Lelelelê lelelelelelelelelê.
Com 06 anos de idade comandava a Escola Mirim, cantava com alegria os sambas e tinha domínio dos instrumentos de percussão. De tanto escutar que a mãe tinha um nome de sambista queria ser compositor, não entendia bem mas escutava que os pais eram mestres/doutorandas cotistas, das primeiras que entraram nas pós-graduações em 2013 - 2014 no Museu Nacional (UFRJ) por que eram negras, chorou muito em 2018 com o incêndio.
José Martinho gosta da sonoridade da palavra“ Cotistas!”, dizia para todo mundo na escola que a família lia muito, cantava bem, dançava bastante, acompanhava o podcast História Preta e eram felizes. Ele tem orgulho de ser preto, de ter nascido no ano do Estatuto, de conhecer das aulas de história Aqualtune, Lélia Gonzalez, Marielle Franco e tantas outras, curte levar o nome de Zé do Caroço, diziam para ele que o segundo Zé do Caroço era “o cara”, andar elegante, conversa envolvente e roupas brancas sempre bem alinhadas combinando com uma gravata vermelha de luta.
Aos 10 anos, alguns meses atrás, Zé do Caroço estava jogando bola com a turma quando entrou uma viatura no meio do campo, os policiais chegaram dando ordens para que todo mundo ficasse parado, estavam procurando por um tal de Zé Pequeno.
Zé do Caroço ficou irritado com a interrupção do jogo bem no momento que estava driblando o último zagueiro e iria ficar de cara pro gol, xingou os policiais como quem estava desafiando o bandeirinha que dava um impedimento inexistente. O responsável pela operação não teve dúvidas, foi direto nele, engatilhou a metralhadora e disse : “Tu tem cara de Zé Pequeno ! Vai com a gente mostrar os pontos…”. Antes do fim da frase, Zé do Caroço olhou bem dentro dos olhos do policial e falou : “ Eu sou o novo líder, vou ser doutor cotista aos pés de Xangô, serei presidente do Brasil, meu nome é Zé do Caroço da geração Alpha !”.
Uma década (2012 - 2022) da lei federal que criou as ações afirmativas no Brasil, fiquemos atentas aos projetos de lei que pretendem alterar a conquista da população negra, o caminho ainda é longo, a realidade impõe vigilância, a cada instante surgem novos desafios e se repetem velhas violências, o momento eleitoral exige de nós intransigência total contra os racistas e votos em quem queremos que nos represente, preferencialmente, pessoas negras, tais quais Leci Brandão, sigamos, estão nascendo um novo líder e uma nova líder a cada instante, afinal de contas, “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” (Conceição Evaristo).
PARA SABER MAIS
BRASIL. Lei n° 12. 288 de 20 de julho de 2010. Estatuto da Igualdade Racial.
BRASIL. Lei n° 12. 711 de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências.
BRANDÃO, Leci. Todos os álbuns, compactos, cd´s e dvds. 1975 - 2013, disponível em https://www.discogs.com/pt_BR/artist/551782-Leci-Brand%C3%A3o. Acesso em 26 de agosto de 2022.
HISTÓRIA PRETA. [Locução Thiago André], disponível em https://www.b9.com.br/shows/historiapreta/. B9 podcasts. Todos os episódios. Podcast. Acesso em 26 de agosto de 2022.
* Eduardo Araújo é Prof. do DCJ - Santa Rita (UFPB), coordenador do Projeto NEABI - Baobá Ymyrapytã; membro do Grupo de Pesquisa – Direitos Humanos decolonialidades e movimentos (UFPB); integrante do Grupo de Pesquisa: GEPERGES - Audre Lorde (UFRPE).
Edição: Cida Alves