Nesse bicentenário perguntamos: estamos dispostos a desaprender para re-aprender?
Por Luz Santos¹ e Larissa Potiguara²
A celebração do bicentenário da “in”dependência nos coloca no exercício reflexivo acerca do uso do tempo chronos³ como invisibilizador de uma noção de educação pluri-versa. Dada fixação de temporalidades, em ação distinta, o tempo linear por vezes dissocia o sentir das sabedorias ancestrais de cosmopercepções africana e ameríndia.
Distraídos pelas redes sociais, alimentamos noção irreal de progresso. Acessamos informações de diferentes lugares do planeta via expansão da rede comunicativa digital, por vezes editada para atender aos prazeres de olhares.
Na linearidade do tempo de chronos, os nomeados progressos tecnológicos digitais produtores de certa sensação de estarmos em diferentes lugares ao mesmo tempo não impediram chegarmos ao bicentenário em cenário pandêmico⁴ semelhante aos cem anos do Grito do Ipiranga⁵ , símbolo nacional de um imaginário de nação “in”dependente.
A imposição didático-pedagógica da narrativa histórica idealizada com a imagem da pintura ao inviabilizar o trabalho das mulheres, notadamente mulheres negras e indígenas (bordadeiras, quituteiras, parteiras, tecelãs, etc.) reiterou o poder do patriarcado no excesso ilustrativo e inferiorizado de ofício em um país agrário. Quem sabe daí a herança de que o “agro é tech, agro é pop, agro é tudo!”.
Embora não represente o tempo chrono passado em concretude, a citada tela/pintura – ferramenta pedagógica − guarda no imaginário nacional o não-lugar social de povos indígenas e comunidades negras, ambas sub-representadas.
Sentir os impactos da obra desde o chão da universidade, mostra como a “arte” reitera a desequilibrada balança da justiça epistêmica no que diz respeito ao direito de co-existência de conhecimentos ancestrais. Na Paraíba a ruptura Brasil-Portugal teve influência das lutas oligárquicas agrárias regionais, cenário político do então Presidente Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa (1919 – 1922), à época eleito sem sequer tirar os pés da França.
No contexto de “in”dependência brasileira, a industrialização durante a Velha República foi marcada pela implantação do projeto da designada Companhia de Tecidos Rio Tinto⁶ , no território indígena do litoral norte paraibano.
Dentre alguns aspectos, o vultoso complexo do setor têxtil instalou-se na América do Sul atraído pelo algodão, livre acesso aos recursos naturais (principalmente madeira para as caldeiras), viabilidade de fácil escoação marítima da produção, consideráveis incentivos fiscais e propriedade de elementos inapropriáveis em cosmopercepções ameríndia e africana – a terra e o tempo. Mas, o que mudou no cenário de nação brasileira em cem anos? O que exatamente celebramos? De que perspectiva celebramos?
Nos primeiros cem anos de nação o Brasil tornou-se República encobrindo em sua constituição de ser Estado “in”dependente conhecimentos de Nações negras e indígenas.
Nesse bicentenário perguntamos: estamos dispostos a desaprender para re-aprender? Nossas escrevivências na extensão universitária nos colocam na perspectiva de mirar o território do conhecimento encoberto pelo pacto civilizatório universal por meio dos conhecimentos nas/das matas, ritos, rios, mangues, lendas, ervas, cantorias, pinturas, língua, artesanato, tradição, costumes e tantos outros saberes circunscritos na pacha⁷ da sabedoria (SANTOS; MENEZES; LUM, 2022).
No espiralar de um tempo caracol, Dona Zita Potiguara um dos troncos velhos das raízes de saberes continuados (cartilha acima) re-existe às violências do progresso “in”dependente e defende a escola como defende a terra que pertenceu aos seus ancestrais. “Minha família foi nascida e criada na aldeia de Jacaré de São Domingos e em Monte-mor. Minha mãe era doméstica e trabalhou na fábrica de tecidos de Rio Tinto na terra de Monte-mor, que foi construída nas terras que eram dos meus avós.
Quando Dom Pedro II veio pra cá pra onde tava os Lundgrens, levaram minha bisavó pra o Forte junto com eles. Deram os títulos de terra à minha bisavó. (...), mas [os títulos] foram tomadas por esses Lundgrens. No conflito das retomadas das terras vim pra aqui (...). Mas isso aqui era nosso, só que a Companhia Rio Tinto tinha arrendado (...). Então tomamos de volta o que era nosso, o que é nosso tem que ser tomado de volta” diz a anciã ao trazer a sabedoria do que fazer enquanto projeto político intercultural diante da economia de exploração “in”dependente.
Neste bicentenário e desde pacha, o território da Nação Potiguara⁸ que na percepção de Dona Zita compreende todo o Vale do Mamanguape re-existe com sua sabedoria ancestral. Sabedoria fronteiriça que intersecciona diferentes práticas baseadas em territorialidades, por isso glocalizada. A benzedeira sente e pensa suas práticas em formações histórico-culturais subversivas à ordem geo-política diante de uma nação cujas formações escolares e universitárias “in”conscientes (ou imaginadas) se quer moldada no ocidente e na branquitude acadêmica (GONZALEZ, 2020; SILVA, PASSOS, 2021; PALERMO & CORREA, 2007).
No tempo que circula o momento atual, por motivo de doença Dona Zita Potiguara encontra-se afastada da escola que ajudou a erguer e onde trabalhou por anos. Primeira moradora colocou água para fazer massa, carregou cimento em caldeirão e balde; fez comida para as crianças estudarem. Na gira do tempo, inspira e aconselha professoras como Larissa Potiguara, uma das crianças que ajudou a educar. “Começava a carregar água na segunda-feira nas garrafas de refrigerante com o carro de mão cheinho pra encher a caixa d´água pra os meninos trabalhar na construção da escola”.
Em período de revisão da política de cotas, a narrativa da benzedeira Dona Zita revela sua luta em prol da educação escolar Potiguara e vai ao encontro do significado de retomada da universidade como território ancestral. Movimento político/espiritual pela vida e em saudação ao sangue derramado de cada corpo catequizado ou açoitado, já denunciava Dona Andila Nĩvygsãnh Kainkáng (KAINGÁNG, 1975). A universidade e todo esse desenvolvimento foram construídos em cima da área indígena e com o trabalho escravizado.
Em alusão à política de cotas, importa registrar os perceptíveis avanços no acesso de estudantes afrodescendentes à educação superior pública. Em proporcionalidade análoga, inverossímil percebe-se a permanência de saberes negros e indígenas na pós-graduação. De tal forma, ao encerrar o ciclo da graduação, estudantes negros e indígenas ainda encontram significativa dificuldade em buscar orientadores de pesquisa.
Na encruzilhada da democratização do pensamento acadêmico, mulheres negras e indígenas em movimento na educação universitária protagonizam agenciamentos em comunidades colaborativas, grupos de estudos e núcleos de extensão/pesquisa. Entre “cercas e fronteiras” na/da universidade, trilham em outra perspectiva de tempo a possibilidade de outra noção de Nação independente. Ritos de sabedorias para o Bem Viver desde Nações negras e indígenas interindependentes, palco de uma noção de educação pluri-versa indissociável na relação entre cultura e teoria.
¹ Maria Luzitana Conceição dos Santos (Luz Santos) é ativista no Movimento de Mulheres Negras na Paraíba, Professora da UFPB, Doutoranda em Educação/UFRGS, integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB), pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas É'LÉÉKO (UFPel/UFRGS), colaboradora no Centro de Estudos Avançados – América Latina da UFPE (CEA-AL/UFPE) e integrante da Comunidade Colaborativa RECOSEC (Instagram: @recosec.ufpb).
² Larissa Gorgonho Soares da Silva Veríssimo (Larissa Potiguara) é ativista no Movimento Indígena Potiguara, graduada em Letras (UFPB), professora no governo do Estado da Paraíba e integrante da Comunidade Colaborativa RECOSEC.
³ Na mitologia grega, chronos significa o tempo físico e cronológico.
⁴ Desde 2020, o Brasil e o mundo revive pelo Coronavírus situação de pandemia ocorrida entre 1918 e 1919 com a gripe espanhola.
⁵ Grito do Ipiranga é uma pintura do paraibano Pedro Américo. A obra retrata uma sociedade racista e sexista. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2022/09/07/independencia-ou-morte-quadro-mais-famoso-do-museu-do-ipiranga-idealiza-fato-historico-saiba-o-que-e-real-ou-nao.ghtml. Acesso em: 07 Set. 2022.
⁶ A planta da Companhia de Tecidos Rio Tinto foi implantada em 1918 (inaugurada em 1924) na cidade de mesmo nome, no litoral norte paraibano por família de suecos-alemães − a família Lundgren. Uma das unidades da Universidade Federal da Paraíba (UFPB/Campus IV) foi instalada nas antigas dependências da fábrica.
⁷ Outro tempo expresso pelos ameríndios de Quéchua. VOCABVLARIO DE LA LENGUA QQUICHUA. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/documentos/profs/romulo/VocabvlarioQqichuaDeHolguin1607.pdf. Acesso em: 04 Mar. 2022.
⁸ A palavra “Potiguara” caracteriza um povo, uma nação, uma comunidade. De acordo com professores/as e estudiosos/as do Tupi antigo, em função da característica específica da palavra “Potiguara”, a mesma não flexiona em grau, gênero ou número, mesmo que haja mudança na classe gramatical no português brasileiro.
PARA SABER MAIS
P. E. da SILVA; PASSOS, A. H. (2021). Expressões da branquitude no ensino superior brasileiro. Revista Espaço Acadêmico.
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/60348#
PALERMO, Z., & CORREA, S. N. L. (2007). Zulma Palermo: a opção decolonial como um
lugar-outro de pensamento.
SANTOS, Maria Luzitana Conceição dos; MENEZES, Magali Mendes; LUM, Kathryn. D.
(2022). Escrevivências: encontro Negro e Indígena em uma Experiência de Extensão
Universitária. Revista de Educação Unisinos.
Edição: Cida Alves