Paraíba

Coluna

Contadores de histórias: quais saberes são realmente necessários à vida em comunidade?

Construindo memórias com as crianças - Comunidade Colaborativa Afro-Educativa RECOSEC/UFPB
As crianças do Aganju amam falar sobre as festas de Egungun porque se identificam

Todos somos contadores de histórias e enquanto adultos achamos que todas as crianças gostam de ouvi-las, mas o que precisamos aprender é que elas também têm suas histórias para contar.
Depois do ano de 2020, com o advento da pandemia de sars-covid19, o mundo parece que parou no tempo, nunca tivemos tanto medo. Já no ano de 2021, vacinados, eu e meu marido resolvemos passar um tempo no terreiro do qual fazemos parte, o Ilé Aṣẹ Òpó Aganju, situado em Lauro de Freitas, BA. 
O calendário religioso estava sendo cumprido, com a presença de poucos filhos de santo, sem muitos convidados. Em setembro, partimos de carro. 
Preciso descrever um pouco o terreiro do Ilé Àṣẹ Òpó Aganju, uma casa tradicional de candomblé de nação ketu, ou seja, a língua usada nos rituais é o yorubá, que fez 50 anos de existência neste ano de 2022, cujo bàbálórìsà é Balbino Daniel de Paula, o Obarayi. O terreno tem aproximadamente 13 mil metros quadrados de construções, entre casas de Oriṣa, barracão de festividades, barracão do culto a Egungun, cozinha comunitária e algumas moradias. Nesse espaço moram diversas pessoas, entre elas, crianças. 
Geralmente nesse espaço há grande rotatividade de pessoas , que vêm todo mês para os rituais mensais, ou em outro período do ano para algum ritual específico ou para as festividades. Algumas dessas pessoas trazem também seus filhos. Quando eu cheguei, em setembro de 2021, encontrei várias crianças nascidas lá e moradoras e ainda outras que estavam por lá com seus pais desde o início da pandemia em 2020. As aulas estavam ainda começando a voltar, encontrei muitas estudando de forma online, o que significava muito tempo sem fazer nada durante o dia dentro de um espaço enorme. 
Observando as crianças no dia a dia, é fácil perceber como elas amam estar neste lugar, participar do dia a dia dos movimentos de clientes que vêm para jogar, dos rituais dos iniciados e das festividades. Mas em dias em que não há funções, as crianças de diversas idades brincam… de encorar os atabaques, de tocá-los, de cuidar de pequenas tarefas das casas, de “incorporar” Òrìṣà, de cantar ṣiré, de viver candomblé como adultos. Meu pai Obarayi, sabedor de que eu pinto telas, um dia me perguntou (do jeito dele de perguntar as coisas) se eu poderia restaurar um painel pintado na parede da casa de Ọmọlu, que é muito antigo e estava desbotado. 
Saí para comprar o material necessário e aproveitando uns dias que antecedem algumas festividades, parti para a pintura! Acordo muito cedo, então começava muito cedo também. Logo fui rodeada pelas crianças, que admiravam o trabalho e começavam a conversar comigo sobre pinturas, saber ou não desenhar. Tive que ir à rua mais uma vez para comprar lápis colorido e papel, que distribuí entre eles para que também fizessem seus desenhos. 
Durante todos os dias em que trabalhei no painel, tive a companhia deles, entre 4 e 11 anos de idade, que não só me faziam muitas perguntas como também me contavam histórias sobre seus desenhos e sobre a vida no terreiro. Se tem um assunto sobre o qual as crianças do Aganju amam falar é sobre as festas de Egungun, como se identificam! E nessas conversas o que se percebe é o amor e o respeito pelo sagrado, nas palavras desses pequenos (nenhum deles é iniciado na religiosidade candomblecista), não há dúvidas sobre a existência do que chamamos de mundo invisível, da cosmogonia de Òrìṣà, Egungun, dos nossos enike¹… 
À primeira vista pode parecer que essas crianças estão repetindo a fé que os adultos que os cercam passam para eles no dia a dia, mas só é uma impressão, porque se observarmos mais de perto, todos nós, adultos, já tivemos nossos momentos de dúvidas! Como, então, esses pequenos filtram os momentos de fé e os momentos de dúvidas para então apenas “repetirem” os momentos de fé? 
Não posso pensar em outra opção que não seja a influência espiritual memorial ancestral incorporada nesses pequenos, que a abraçam sem perguntas ou medos ou dúvidas, Apenas acolhem memórias antigas, num tempo espiralar² que vai e volta, sem pensar, sem questionar, eles apenas doam seus corpos para receber tudo o que a ancestralidade oferece, os sons do atabaque são familiares, assim como um mundo invisível paralelo que coexiste com o nosso, visível, sem conflitos entre os dois, mas plenos de conhecimento e felicidade, sim, porque nossos rituais pressupõem alegria, nossas rezas são poemas, nossos novos nomes são louvações à nossa ancestralidade, e nossas crianças são pequenos corpos futuros incorporados de passados, e aí eles encontram as mais sinceras respostas. 
As questões que me vêem e me acompanham desde meus anos como professora, são: quais saberes são realmente necessários à vida em comunidade? o que sabem as crianças? o que sabemos sobre os sentimentos das crianças? o que elas podem nos ensinar? qual o impacto da escola branca sobre essas crianças? 
As crianças do Aganju falam Yorubá com os bàbá Egun sem terem tido aulas da língua, as crianças dançam e cantam e rezam em Yorubá e sabem, em linhas gerais, o porquê e quando e qual cantiga e dança fazer, mas na escola, têm dificuldade em apreender noções básicas de comunicação em português ou linguagem matemática, mas a base escolar brasileira é europeia, com jeito de branco, com forma de branco, nada vinculada à nossa ancestralidade africana, por isso não apreendida por essas crianças porque não reconhecem quase nada durante seus anos escolares, a escola é vista como um castigo, onde não se reconhecem, não são convidados a interagir na maioria das vezes, mas nos terreiros, aí sim, toda aprendizagem vale à pena, é reconhecida e apreendida, é o espaço familiar com conhecimentos familiares.
Pensando a cultura africana que está entrelaçada na cultura brasileira, penso eu, é um caminho para repensar os conhecimentos que estamos tentando ensinar nas escolas brasileiras para os afrodescendentes que têm no corpo a ancestralidade africana adormecida, calada, invisibilizada, mas nos terreiros podem se lançar, sem medo, ao escuro, porque a ancestralidade os ampara, os acolhe e eles a identificam. 
Precisamos prestar mais atenção à essas crianças e tantas outras, negligenciadas por uma sociedade que pensa branco, mas quando estão dentro dos terreiros, se sentem acolhidos e têm contato com ensinamentos em performances que ocorrem em um tempo em espiral, não linear, que são, sobretudo, reconhecidos, incorporados e apreendidos, porque os corpos lembram. 

*A produção deste texto é feita em parceria com a Comunidade Colaborativa Afro-Educativa RECOSEC/UFPB*

AUTORA: Gláucia Gomes de Azevedo
Mulher, mãe, professora de língua Yoruba, professora aposentada de Geografia e Sociologia, mestra em Educação, artista plástica, ajoye, pesquisadora de cultura Yoruba, integrante do grupo de pesquisa Ọmọ kekere (UFPel) e integrante do grupo de estudos EL’EEKO

REFERÊNCIAS

1 Dica de leitura: “Pensar nagô”, Muniz Sodré 
2 Dica de leitura: “Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela” de Leda Martins
 

Edição: Polyanna Gomes