Paraíba

Coluna

RECONSTRUÇÃO

Lula com apoiadores após o resultado das eleições presidenciais. - Agência Brasil
conseguimos, e já é muita coisa, fechar as portas do inferno.

*Por Cauby Dantas



Gosto muito da chave de leitura sugerida por Silviano Santiago quando se refere aos clássicos do pensamento social brasileiro como sendo um “reservatório infinito de luz”. É disso, com efeito, que precisaremos cada vez mais a partir de agora. Há que se buscar, ainda e além da compreensão dos fatos, o apaziguamento dos ânimos, o atenuar das paixões e das temperaturas, as afinidades possíveis, essenciais à reconstrução de um país dividido e imerso nos escombros e ruínas intencionalmente urdidos por um governo infame e de desconstrução de todo valor civilizatório. Uma sociedade não pode viver em eterna campanha política, mesmo porque os desafios colocados aos eleitos – todos os eleitos – são imensos e não cabem na retórica quase sempre vazia dos palanques.  

A leitura desses faróis – ainda uma vez Silviano Santiago – me parece imprescindível à reconstrução urgente.  


Cauby Dantas. / Arquivo Pessoal.

Por enquanto, à espreita e em busca daquele “reservatório de luz”, me pego relendo, nesta manhã de segunda-feira pós-eleição, O abolicionismo, de Joaquim Nabuco, publicado em 1883 como texto de propaganda do movimento abolicionista, que teve no grande autor pernambucano um dos seus principais entusiastas, atuando em várias frentes, parlamentar, diplomática, oratória e, claro, intelectual. Em suas páginas aparece um ponto de valor teórico inesgotável que é a percepção quanto à persistência e perenidade da marca da escravidão em nosso país. Visto com os olhos de hoje, se pode dizer que , infelizmente, raras vezes uma premonição se revelou tão acertada. E isso em reforço do nefasto conjunto dessa herança maldita, expresso em racismo, preconceitos de variados matizes, violência e imensas desigualdades.  

Ainda é muito cedo para uma avaliação mais consistente da conjuntura política que emerge das urnas do segundo turno da eleição presidencial. Qualquer tentativa nesta direção terá que, necessariamente, esperar pela depuração dos dias, bem como por uma absorção mais racionalizada dos acontecimentos. Estamos, vencedores e vencidos, ainda sob os eflúvios da paixão e isso, sabemos, costuma obliterar, ou comprometer, a capacidade cognitiva. 

Alguns comentários , no entanto, são possíveis, com os devidos descontos, e sem temor em relação aos riscos e incertezas acionados pelos efeitos da imediaticidade histórica, aquela que se faz sob nossos olhos. 

Comecemos pela transição. Não podemos esperar que ela seja tranquila. Isso implica, do lado derrotado nas urnas, um desprendimento e um sentido republicano de todo ausentes da parte do atual (ainda) presidente.  Reconhecer a legitimidade da vitória do adversário é um gesto de grandeza que não devemos esperar – seria ingênuo – que seja demonstrado por Bolsonaro. Estamos aqui muito distantes, por exemplo, da nobreza republicana de um Fernando Henrique Cardoso que, em 2002, ante o fato consumado da vitória de Lula, foi o primeiro a telefonar-lhe e parabenizar-lhe. Fez mais: colocou à disposição do recém-eleito inúmeras salas do Palácio do Planalto, com assessores de nível ministerial, o que permitiu à equipe que chegava o amplo acesso a dados e informações, de modo a garantir uma troca de governo segura e qualificada. Sempre se poderá objetar, com razão, que tudo isso é previsto em lei. Mas deve ser ressaltado o ambiente harmônico e civilizado em que seu deu a rotatividade de governo.  O mundo civilizado aplaudiu a transição brasileira. Alguém pode imaginar que isso acontecerá agora?


Comemoração da vitória de Lula na Av. Paulista. / Ricardo Stuckert

   

Importante também será a maneira de lidar com a persistência do fenômeno do bolsonarismo. Assim como as marcas da escravidão antevistas por Nabuco, já podemos dar como certo que essa será, também, uma marca difícil de apagar da nossa história política. A figura que personifica o fenômeno, chamada de “mito” pelos seus apoiadores, talvez seja o primeiro líder da extrema-direita brasileira a ter apelo de massas. É muito doloroso admitir isso. Mas é necessário. Tivemos, no passado, um Plínio Salgado, líder da Ação Integralista Brasileira, versão local, e felizmente canhestra, do fascismo. Mas mesmo esse senhor era um intelectual, sabia articular suas ideias, ainda que erradas. E isso é o bastante para colocá-lo em um patamar muito superior em relação à truculência e primitivismo da tosca figura que (ainda) nos (des) governará até 31 de dezembro de 2022. Se foi muito duro derrotá-lo nas urnas, e isso depois de uma campanha suja, em que seus asseclas colocaram em movimento um espetáculo de horrores, feito de tiros e ameaças, mentiras deslavadas e ensaios golpistas – o último foi uma operação da polícia rodoviária federal quando as urnas ainda estavam em pleno funcionamento – muito mais difícil será a convivência com suas bases remanescentes, espalhadas por um país que sai nitidamente dividido dessa nona eleição presidencial, considerando-se como marco a eleição de 1989, a primeira realizada após o término da ditadura civil-militar (1964-1985).  

O novo governo terá pela frente, ainda, o desafio de administrar os escombros que sobraram da aventura bolsonarista. Todos conhecemos a enorme capacidade de negociação do presidente eleito. E Lula, certamente, vai precisar muito dessa habilidade desde o primeiro momento em que ocupar a cadeira presidencial. Não será fácil construir, em termos republicanos, como obviamente se deseja, uma base de apoio sólida no Congresso. Como negociar, sem vender a alma ao diabo, com o chamado “Centrão”, esse núcleo fisiológico que, em cada legislatura, esmera-se em sua capacidade de capturar e tornar reféns os sucessivos governos?  Eis aí mais um elemento persistente, espécie de pecado original ou fantasma político a nos assombrar desde tempos cabralinos. O que fazer com o “orçamento secreto”? Como romper, ainda que de modo tênue, essas amarras?  

Em meio a isso tudo, ainda resta a pandemia, que, ao contrário do que imaginam muitos, não acabou. Sobretudo em seus efeitos socioeconômicos imediatos, expressos no número de desempregados (cerca de doze milhões de pessoas) no aumento da miséria, no retorno ao mapa da fome – do qual havíamos saído no primeiro governo Lula: o que o governo que iniciará no primeiro dia de 2023 fará para enfrentar tudo isso?  

Recuperar a imagem internacional do Brasil: eis aí outra dura tarefa a ser enfrentada nesse terceiro mandato de Lula. O Brasil virou um pária no mundo. A outrora respeitada diplomacia brasileira foi reduzida a pó pela ignorância, pela mesquinhez e falta de consideração a qualquer tipo de liturgia por parte do atual governo. Essa recuperação é urgente. O Brasil não pode continuar sendo um pária no mundo. Nesse sentido, alguns sinais positivos já começaram a ser emitidos, a exemplo do anunciado desbloqueio do Fundo Amazônia, por parte do governo da Noruega, bem como pelas felicitações de vários líderes mundiais endereçadas ao presidente recém-eleito. 

Esperemos a sedimentação dos acontecimentos. Por hora, nos restam, e nos cabem, o júbilo, a alegria, o alívio de saber que o mais imediato foi alcançado, com a derrota eleitoral do mais obscuro e primitivo espectro político-ideológico engendrado nas entranhas do nosso modelo político. Sérgio Buarque de Holanda – esse outro feixe de luz cognitiva – escreveu, em seu Raízes do Brasil, de 1936, que a democracia brasileira sempre foi um grande mal-entendido. Não tenhamos dúvidas: acabamos de desferir um forte golpe naquele que é, estou convicto disso, o maior desses mal-entendidos; seja-nos permitido, pois, saborear a leveza; que possamos, de modo tranquilo, sereno, fazer a festa que ainda nos cabe fazer; sem achar que alcançamos o paraíso; não teremos, obviamente,  o céu a partir de janeiro; apenas conseguimos, e já é muita coisa, fechar as portas do inferno. Os historiadores do futuro terão, com efeito, muito trabalho pra explicar como foi possível, neste interregno 2019-2022, tanta insensatez em terras brasileiras. Como foi permitida tanta brutalidade. Como foram urdidas  as mais abjetas tramas e malhas onde enredar, e asfixiar – e ainda rir da falta de ar – qualquer forma de vida civilizada. Apenas começamos a nos livrar dessa carga insana.  

Fiquemos, por enquanto, com o poeta e o maestro, Carlos Drummond de Andrade: o Brasil é o nosso “claro enigma”. Tom Jobim: “O Brasil não é para amadores”. 

 

PARA SABER MAIS

DIEGUEZ, Consuelo. O ovo da serpente: nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e a chegada ao poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 

MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. 

SANTOS, Boaventura de Sousa. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016. 

 

*Professor do Departamento de Ciências Sociais e Fundamentais, do Centro de Ciências Agrárias da UFPB. Apaixonado por Sociologia, literatura, futebol e música popular, não necessariamente nessa ordem. Extensionista Universitário.  

 

Edição: Heloisa de Sousa