De crime previsto no Código Penal brasileiro a Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, a capoeira é, hoje, uma das principais manifestações culturais brasileiras e está presente em mais de 150 países, segundo levantamento o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (Iphan).
Herança dos povos africanos trazidos à força para serem escravizados no Brasil, ao longo da história a capoeira já foi concebida como luta, dança, esporte, folclore, ritual, prática pedagógica, terapêutica e cada vez mais tem sido assumida e reivindicada por seus praticantes como saber tradicional e movimento de resistência e emancipação social da população negra.
Na Paraíba, assim como na maioria dos estados do país, os grupos de capoeira estão presentes em praticamente todos os municípios do estado com trabalhos que envolvem desde a promoção da saúde até a formação cultural e cidadã de milhares de crianças, adolescentes, jovens e adultos. Neste sentido, destaca-se a contribuição do(a)s mestre(a)s contramestre(a)s, professore(a)s, instrutore(a)s e treinéis na transformação da realidade não só de praticantes como também de famílias e comunidades inteiras através da afirmação e resgate das tradições, conhecimentos e valores da cultura afro-brasileira representada na capoeira.
Consciência
Educadora popular, ativista social e mestra do grupo Capoeira Angola Palmares de João Pessoa, Maria de Lourdes Farias Lima, a Mestra Malu, desenvolve há mais de 20 anos um trabalho com crianças e jovens do bairro do Roger. Segundo ela, o universo da capoeira – a roda, o jogo, as músicas, os instrumentos, o ritual – traz consigo uma série de princípios e fundamentos que envolvem desde a valorização da identidade negra e da coletividade até uma revisão crítica da história brasileira e a conscientização sobre a luta por direitos.
“Quando a gente tem a possibilidade de abrir uma roda com crianças, adolescentes e jovens nós podemos experimentar um processo formativo existencial. É se reconhecer, é pertencer. Hoje o movimento da capoeira ensina que a gente precisa firmar esse lugar de quem somos. É a partir do sentir, do falar, do olhar que a gente se reconhece como pertencente à matriz afro-indígena”, explicou ao Brasil de Fato PB.
Questionada sobre que diferença a vivência da capoeira faz na vida dos capoeiristas, Mestra Malu é categórica: “Tudo!”
“Sabendo quem eu sou, eu posso caminhar. Eu sei para onde tenho que caminhar porque, quando eu olhar para trás, eu tenho um lugar de pertencimento. Eu não tenho dúvidas de quem eu sou. Eu sei, inclusive, quem é meu inimigo nessa luta: o sistema opressor capitalista e racista que está na instituição, que está na estrutura, que está no imaginário social. Eu preciso saber disso para poder afirmar esse lugar de luta”, afirma a mestra.
Identidade
Com quase 30 anos de vida dedicados à capoeira, Alberto Antônio dos Santos Silva, o Contramestre Escurinho, do grupo Capoeira Badauê, também ressalta a importância do legado ancestral da arte no que se refere ao despertar da consciência negra.
“A capoeira traz consigo toda uma ancestralidade que reafirma a importância de se reconhecer como cidadão brasileiro negro, como afrodescendente, com consciência de que tudo que é preto é bom, é maravilhoso! Falar de capoeira é falar de vida, é falar de existência, de resistência. É falar da consciência negra de todas as horas, é o que eu vivo”, resume o contramestre.
Assim como mestra Malu, Escurinho também destaca a transformação que a capoeira promove nos praticantes, sobretudo na juventude negra, ao abrir novas perspectivas através de uma espécie de realinhamento da visão sobre o passado, presente e futuro.
“A partir da capoeira eu entendo que pertencer a uma comunidade, a uma quebrada, à favela, não é sinônimo de algo pejorativo. A partir dela a gente consegue alcançar esse campo do pertencimento, da ancestralidade, de saber o chão que pisa. Hoje é uma honra começar um trabalho de base dentro das periferias e ver cinco, dez anos depois, um pedagogo, por exemplo, ali, se autoafirmando e contribuindo com a comunidade com muito orgulho”, enfatiza.
Políticas Públicas
Mesmo após o reconhecimento internacional com o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, em 2014, a capoeira, e mais especificamente os mestres e mestras que zelam pela manutenção de suas tradições e saberes, ainda hoje são obrigados, em sua maioria, a conviver com a falta de políticas públicas que garantam recursos adequados para a realização de seus trabalhos e, em alguns casos, até para viver.
Na Paraíba, por exemplo, embora existam algumas iniciativas ligadas à Lei 10.639/03, que estabelece a inclusão da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo da Rede de Ensino, elas se restringem a atividades em escolas e, portanto, a capoeiristas que apresentem uma mínima formação acadêmica, o que não é o caso de todos os mestres e mestras, como sublinha mestra Malu:
“Existem mestres e mestras que têm trajetória de vida da periferia e que, com muita luta, conseguem ascender, ter uma graduação, chegar até a um mestrado. Mas nós temos mestres que têm muita potência para falar sobre a capoeira, sobre suas vidas e, assim, educar as crianças e os adolescentes, mas são analfabetos nessa cultura letrada. Meu povo tem outra tradição. É a oralidade, é a corporeidade, é outra forma de educar o outro, a si mesmo e o mundo. Então como estar nos espaços? Como o governo vai reconhecer essa formação da tradição e favorecer os trabalhos socioculturais nas comunidades desses mestres? Essa é a nossa luta”, pontua a mestra e educadora.
Salvaguarda
De acordo com Emanuel Braga, antropólogo do Iphan na Paraíba, além das parcerias para ministrar aulas em instituições educacionais, entre as principais diretrizes de políticas públicas levantadas pelos capoeiristas que participam do Fórum para Salvaguarda da Capoeira na Paraíba estão: a promoção de gratificação ou aposentadoria especial para o(a)s mestre(a)s; o apoio logístico para apresentações; a estruturação de polos e projetos comunitários no estado; e a elaboração de um plano de manejo para as áreas de onde são extraídas as matérias-primas utilizadas na produção dos instrumentos musicais da capoeira.
Devido ao desmonte das políticas de patrimônio promovidas pelo Governo Federal nos últimos anos, tais demandas até hoje praticamente não saíram do papel. Contudo, segundo Emanuel, os capoeiristas do estado têm se organizado e existe uma expectativa que, com o próximo governo eleito, o cenário possa melhorar.
“A Capoeira da Paraíba, atualmente está mais organizada como movimento por meio de representações como o Conselho de Mestres do Estado da Paraíba e os coletivos Capoeira na Escola, atuantes em Campina Grande, João Pessoa e outros municípios, podendo conquistar um espaço maior e melhor estrutura diante dos poderes públicos e da sociedade de modo geral, em uma conjuntura governamental que, assim espero, seja mais respeitosa, aberta e ativa com os patrimônios culturais brasileiros”, comentou.
Edição: Maria Franco