Paraíba

Coluna

Por que nós, mulheres, estamos cada vez mais cansadas?

Desenho do indiano Anujath Sindhu Vinaylal, de apenas 10 anos, em homenagem à mãe, que passava o dia todo no trabalho doméstico não remunerado. - Reprodução Folhão News
Sem o trabalho reprodutivo não há o trabalho produtivo e remunerado

Por Ana Cristina de Oliveira Mélo*



Se você é mulher e está lendo esse texto, muito provavelmente nesse momento você se sente cansada. Especialmente após a pandemia de Covid-19, nos sentimos ainda mais cansadas fisicamente e mentalmente. Em 2020, aquelas mulheres que estavam empregadas e fizeram home office, sentiram a demanda do trabalho aumentar e o trabalho doméstico se acumular. Na ocasião daquelas que são mães, com a presença dos filhos em tempo integral em casa, elas sentiram ainda mais fortemente esse cansaço. A má gestão da pandemia com o desgoverno de Bolsonaro tornou a vida financeira, pessoal e social das mulheres ainda mais difícil. Muitas de nós perdemos os empregos, não conseguimos empregos novos e nos vimos totalmente desassistidas pelo poder público. 

Historicamente somos as responsáveis pelo aprovisionamento social, ou seja, recai sobre nós o papel de trazer a comida, a água e o remédio para dentro de casa, isso quando há casa, pois quando não há, ela também é a responsável pelo provimento do alojamento. Com a inflação cada vez mais alta, salário desvalorizado e cortes no financiamento público nas áreas básicas (saúde, educação, previdência social, etc), a responsabilidade de cuidarmos de nós mesmas e da nossa cria se tornou um fardo imenso. As atividades de reprodução que realizamos no lar (só para citar alguns exemplos desse trabalho: lavar, cozinhar, fazer compras, limpar a casa, cuidar das crianças, dos idosos, dos doentes, dos animais de estimação, das plantas etc.) são essenciais para a vida humana. Sem o trabalho reprodutivo não há o trabalho produtivo e remunerado fora (ou dentro) de casa. O capitalismo precisa desse nosso trabalho exatamente como ele está: gratuito, invisibilizado e desprestigiado, para que a roda da máquina capitalista gire sem maiores problemas. 

O ataque ao aprovisionamento social é uma realidade com a expansão do neoliberalismo nos países do Sul Global. Os restaurantes populares, creches, lavanderias públicas, moradias populares, saúde acessível e de qualidade, saneamento básico, transportes públicos eficientes e demais infraestruturas nas cidades, são realidades cada vez mais distantes. Nos últimos 4 ou 5 anos vimos tudo isso ir se desmantelando e se tornando cada vez menos presente na vida da sociedade. Isso tudo acontece de forma proposital, o neoliberalismo é um projeto de poder que quer acabar com o bem-estar social e responsabilizar as famílias, de forma individual e privada, bem como excluir a maioria da população que não tem renda para comprar esses serviços básicos para a sobrevivência humana. Ouso dizer que para além de um projeto de exclusão, esse é um projeto de morte, pois os fortes e ricos sobreviverão, os demais, ficarão à sorte do destino.

Bem, como se tudo isso ainda não fosse suficiente, para além de cansadas, excluídas e desvalorizadas, nós mulheres somos violentadas. Com a pandemia, o lar, que já foi considerado um local seguro e de descanso, passou a ser um local de violência ainda mais presente. Os índices de violência doméstica aumentaram muito com a presença ainda maior da família e dos agressores (que são os próprios companheiros) em casa. Os dados de violências registradas, mostram que essa situação é ainda maior e mais cruel para as mulheres negras no Brasil.

O cansaço vem de forma desigual, cada uma de nós temos realidades diferentes, algumas com filhos e outros dependentes, outras não; algumas com vários trabalhos, estudos e o trabalho interminável de casa, outras não; algumas com deficiência e a falta de acessibilidade nas cidades, outras com dependentes hospitalizados etc. Apesar dessa diversidade de realidades, o cansaço, em alguma medida, chega até nós. Sobre os assuntos que as mulheres conversam e discutem, o que mais se ouve é “correria”, “dar conta de tudo”, “tô morta de cansada”, “tô sem tempo de cuidar de mim” entre outros.  Me pergunto se algum dia essa situação vai mudar, se esse capitalismo selvagem vai deixar de existir e se um dia vamos poder acordar pela manhã sem pensar na lista enorme de afazeres que temos para cumprir naquele dia. Estamos exaustas de estar sempre cansadas e sobrecarregadas, no dia em que decidirmos, unidas, ao mesmo tempo e em todos os continentes, parar de realizar todo e qualquer tipo de atividade reprodutiva, conseguiremos finalmente parar as engrenagens que fazem os motores do capitalismo girar. E o que virá depois disso? Só os nossos sonhos dão conta de imaginar.

Esse texto foi inspirado nas minhas vivências cotidianas e nas reflexões trazidas por Tithi Bhattacharya em seu texto “Explicando a violência de gênero no neoliberalismo”.



*Mestranda em Relações Internacionais pela UEPB; Economista e militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Edição: Heloisa de Sousa