Em minha pesquisa conheci o histórico de minhas tias no auxílio do nascer, gestar e produzir vida
Por Ariane dos Reis Moreira*
Nos últimos meses, antes de receber o convite para essa escrita, minhas trocas tiveram como temática central a memória. De forma não proposital, os assuntos que emergiram traziam a reflexão do quanto ela é importante ferramenta de manutenção e existência para as pessoas, em especial para pessoas pretas. De certa maneira esses encontros me preparavam para desenvolver o pensamento e transformá-lo em palavras.
Nessas conversas e leituras sobre memória, esta se apresentou a partir da sua função, que é de nos permitir experimentar o mundo através das narrativas ideológicas que compõem as práticas culturais e interculturais de diferentes grupos compondo nossa subjetividade. Passei a ter uma percepção sinestésica mais atenta às histórias contadas pelas minhas mais velhas após receber o conselho de Ailton Krenak por meio de seu livro Ideias para adiar o Fim do Mundo. Ele argumentava que as pessoas precisam formar “vínculos profundos com sua memória ancestral”, pois elas dão as referências que sustentam a identidade e, dessa maneira, impedem que fiquemos loucas nessa sociedade que produz morte e que caminha para o fim do mundo como conhecemos.
Em minha pesquisa na comunidade tradicional de terreiro em que nasci me deparo constantemente com as memórias de minhas mais velhas, seja na feitura de alguma comida ou nas conversas sobre os “tempos antigos”. Foi numa dessas ocasiões que tive a oportunidade de conhecer o histórico de minhas tias com relação ao auxílio do nascer, gestar e produzir vida em contextos complexos de vulnerabilidades. Algo que surge aqui como uma história em que acredito ser um “tipo de propósito” compartilhado das mulheres de minha família e que “por coincidência” acabei perseguindo sem dar-me conta.
Quando tinha dezessete anos recebi a incumbência de acompanhar uma prima da mesma idade em seu trabalho de parto na maternidade de minha cidade. Éramos jovens demais e nos distraíamos com conversas aleatórias e risadas que invadiam todos os corredores, as enfermeiras vinham ao nosso quarto para advertir tal comportamento. O hospital era desses comuns, com duas ou três gestantes por quarto, tudo muito branco e iluminado, com algumas bolas de pilates espalhadas pelos banheiros, com sons de choro de bebês e alguns gritos daquelas que iniciavam o trabalho de parto.
Aquilo, na verdade, era bastante estressante e eu sentia uma mistura de ansiedade e medo vinda de minha prima após as primeiras contrações provocadas pelo “sorinho” em sua veia. Não sabia muito bem o que fazer para confortá-la, mas dentro de minhas possibilidades eu a distraía e acompanhava nas caminhadas intermináveis pelo corredor, para aliviar suas dores.
Uma de suas colegas de quarto, completamente sozinha, com um olhar de alguém que não tem mais alternativas, me pediu para ajudá-la. Infelizmente não recordo o nome dela e nem de seu bebê, mas prontamente estendi minha mão para ela e chamei as enfermeiras para dar seguimento aos rituais daquele parto. Nunca senti tão de perto a vulnerabilidade de uma mulher, ela parecia indefesa e eu fui a escolhida para fazer sua guarda e a guarda do neném que estava gestando. Meus únicos dizeres eram: “Você não está sozinha!” e “Vai dar tudo certo, vamos juntas!” algo que saiu de forma fácil da minha boca, enquanto ela fincava suas unhas na minha mão direita, que tem a marca até hoje.
Após aquele desespero, apreensão e dores, fomos para outra sala, e lá tive a oportunidade de ver cada detalhe do rosto daquela mulher se alterar para um estado de alívio e felicidade que eu nunca antes havia presenciado.
Era como mágica, dizem que tem a ver com os hormônios, eu prefiro acreditar no encantamento da chegada daquela nova vida. Um menininho, roxinho e de pele enrugadinha acabava de chegar ao mundo e eu só sabia sorrir. Algum tempo depois formei-me como doula e aprendi sobre ervarias, aromaterapia, alimentação, exercícios e tudo mais que pudesse ser útil para uma gestação tranquila e sem complicações.
Após essa formação em conversa com a sogra de uma prima, ela me contou que nasceu pelas mãos da tia de minha mãe, que era uma parteira conhecida da região, eu não a conheci. Algo que depois minha tia complementou contando cada detalhe de suas espiadas pelas frestas da casa - quando criança - os momentos em que as gestantes entravam na casa da minha tia-avó e saíam de lá com seus bebês no colo após todo aquele barulho.
Ouvi histórias sobre cada coisa que aprendi na formação de doulas e que minhas tias mais velhas já faziam antes mesmo dos cursos caríssimos e cheios de mulheres brancas existirem. Retomei assim as memórias de minhas tias, nossos saberes ancestrais de produção de cuidado para atender outras mulheres, o que compreendo como um continuar de suas histórias e práticas no tempo espiralar.
Inicio isso num contexto em que as mortes maternas crescem, que violências obstétricas são incentivadas e que o descaso com saúde tem sido uma constante. E justamente por esses motivos que a necessidade de recuperar algumas tecnologias de re(existência) surge, para que se possa construir alternativas diante das vivências que compartilhamos. Entendendo assim que são nos movimentos espiralares que conseguimos acessar nossas práticas “antigas”, cumprindo aquilo que compartilhamos enquanto projeto rememorado de sociedade. Como diz Eliane Potiguara, “é na vivência cotidiana o nosso maior triunfo: a memória.”
*Filha da Mari, neta da Dona Bê, Administradora Pública e Social, mestranda em Psicologia Social e Institucional na linha de pesquisa Políticas Públicas e Produção de Subjetividade, Mestranda em Psicologia Social e Institucional - UFRGS. Pesquisadora no Núcleo pesquisas ELÉÉKÒ - Agenciamentos Epistêmicos Antirracistas Decoloniais e NUPSEX - Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero UFRGS; A produção do texto foi feita em parceria com a Comunidade Colaborativa Afro-Educativa RECOSEC/UFPB;
Edição: Polyanna Gomes