O percurso nos ajuda a pensar como a cidade está sendo produzida e pensada
Por Rafael Faleiros de Padua
Estudar a cidade tem uma especificidade interessante. Nós vivemos na cidade, nós circulamos pelos seus lugares, nós visualizamos as paisagens e nós vivenciamos os lugares cotidianamente. Ao mesmo tempo, enquanto estudiosos da cidade, nós temos que tentar entender a sua produção, o modo como ela vem sendo construída e reconstruída ao longo da história, os processos que fazem avançar o seu tecido urbano para regiões rurais. Ou seja, ao mesmo tempo que estamos na cidade e a vivemos, quando a pesquisamos, nos colocamos como observadores das lógicas que atuam em sua produção e reprodução.
Há alguns dias, realizei com alguns alunos da disciplina Geografia Urbana da UFPB, um trabalho de campo que percorreu várias regiões da cidade de João Pessoa, entrando inclusive no município de Cabedelo, onde este é uma extensão da urbanização da capital, na região de Intermares e Ponta de Campina. A atividade de trabalho de campo tem para nós, pesquisadores da Geografia e de campos que fazem reflexões sobre as dinâmicas espaciais, uma importância central na construção do conhecimento.
Em nossa formação, somos treinados a olhar o espaço e já começar a pensar o que a paisagem pode nos revelar sobre seus conteúdos. A paisagem é o primeiro momento da pesquisa, é o imediato da realidade que se coloca para o nosso olhar. No trabalho de campo nos colocamos diretamente nos lugares, onde podemos olhar a paisagem e começar a pensar sobre o modo como essa paisagem e esse lugar foram construídos e como eles são vividos. Nunca vamos esgotar os conteúdos de uma realidade determinada com a qual nos deparamos, mas esse momento é imprescindível para começarmos a recolher dados sobre a dimensão espacial da realidade.
A observação, para os estudiosos do espaço, já é um dado importante. Por isso o treinamento do olhar, para que este veja a paisagem e já coloque questões ao que vê nela imediatamente, para posteriormente trabalhar essas questões com outros dados levantados durante a pesquisa e assim poder pensar de forma mais concreta os conteúdos dessa realidade.
Grande parte dos estudos na universidade realizamos dentro da universidade, mas o objetivo é entender a realidade do mundo. Dentro da sala de aula, os debates são momentos também fundamentais da formação, quando podemos nos aprofundar nas questões teóricas a partir de leituras de textos e de interpretações de processos em curso que recuperamos a partir de documentos escritos ou também audiovisuais.
Na sala de aula desenvolvemos sempre reflexões teóricas, em grande parte com o auxílio de outros pesquisadores que já escreveram suas reflexões em textos que utilizamos para agora nós também construirmos nossas reflexões sobre a realidade que pesquisamos a partir de sua expressão espacial. Quando vamos para o trabalho de campo, estamos nos exercitando no imediato da construção do conhecimento. Toda a construção teórica feita a partir de debates na sala de aula, quando não somente o professor é sujeito do conhecimento, mas também e sobretudo os alunos, é potencializada quando vamos para o trabalho de campo, quando buscamos articular o que estudamos através dos textos e dos debates com a realidade diretamente.
No trabalho de campo, anotamos o que vemos e o que escutamos dos interlocutores com os quais conversamos e entrevistamos, anotamos reflexões de grupo que podem ser construídas nesse momento, tiramos fotos de elementos que julgamos serem representativos dos processos de transformação do lugar e da paisagem. O trabalho de campo, dessa forma, é um momento de levantamento de dados imprescindível de qualquer pesquisa sobre o espaço e para a formação de estudantes de ramos do conhecimento que se dedicam a pensar as questões espaciais.
Nesse último trabalho de campo realizado, a proposta era que cada aluno(a) fizesse uma pesquisa anterior sobre algum processo representativo da urbanização de João Pessoa e região e, durante o trabalho de campo, iríamos no lugar que cada um(uma) estudou para que ele(ela) apresentasse seu trabalho no lugar. Acrescentamos uma primeira parada, logo depois de sairmos da UFPB, na Ocupação João Pedro Teixeira, no Edifício Nações Unidas, no Ponto de Cem Réis, onde 40 famílias ocupam um prédio da prefeitura que está em grande parte desocupado.
É uma ocupação liderada pelo Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Lá fomos recebidos por representantes da Ocupação que nos relataram como foi o processo de ocupação e como é o funcionamento da Ocupação. Durante as aulas ao longo do semestre debatemos sobre as ações dos movimentos sociais e a importância de suas ações na luta pela moradia, mas também na luta por direitos mais amplos na cidade. Luta que avança para uma perspectiva de que todos(as) temos direito a ter uma vida digna na cidade. A Ocupação no centro de João Pessoa revela que não é somente a moradia que está em questão, mas a própria cidade que deve ser conquistada a partir da luta.
Estar lá na Ocupação e ver como a luta se realiza na prática é um momento importante para a formação dos estudantes e do professor, quando nós estamos em contato direto com a prática que evidencia as desigualdades produzidas na nossa realidade e também com as possibilidades de enfrentamento dessas desigualdades em direção a uma realidade onde a apropriação do espaço para a vida concreta não esteja submetida totalmente à lógica da mercadoria. A Ocupação questiona em ato a mediação dessa lógica e denuncia, com muita dificuldade e luta, a opressão que ela impõe a toda a sociedade, apresentando, ao mesmo tempo, possibilidades de se avançar para uma cidade mais humana.
Depois da Ocupação descemos para o Parque da Lagoa Solón de Lucena, onde um aluno apresentou sua pesquisa sobre as transformações do lugar; depois fomos para Mandacaru/Alto do Céu, onde outra aluna apresentou a formação daquele lugar, depois passamos por Intermares/Ponta de Campina, Largo de Tambaú, Mercado da Torre (para almoçar), região dos condomínios fechados no Altiplano, Comunidade São Rafael, Cruz das Armas, terminando o dia de trabalho de campo no Quilombo de Paratibe. Saímos da UFPB pouco depois das 8hs da manhã e retornamos por volta das 17:30.
Nesse percurso todo, indo diretamente nos lugares, debatendo os processos de produção e transformação desses lugares, com suas especificidades, pode-se compreender que a cidade é ao mesmo tempo fragmentada e é uma totalidade. Através de cada pesquisa dos alunos e também na Ocupação João Pedro Teixeira, vimos questões específicas da realidade que devem ser compreendidas no movimento da totalidade da urbanização da cidade.
Visualizamos as lutas pela cidade realizada pelos movimentos sociais, passando pelos processos de verticalização e de valorização do espaço no avanço do setor imobiliário e do setor de turismo. Vimos também o ritmo da cidade e um pouco do modo como a cidade é vivida em suas diversas partes. No entanto, um procedimento importante a partir do trabalho de campo, depois de todo esse percurso, é pensar a cidade como totalidade aberta, que se transforma a partir de lógicas que precisamos entender. A lógica dominante que produz a cidade cada vez mais como mercadoria é a mesma lógica que produz as interdições para o uso do espaço para as classes que não detém o montante de dinheiro necessário para acessar o espaço.
Nesse sentido, esse percurso nos ajuda a pensar como a cidade está sendo produzida e pensada pela prefeitura e pelos sujeitos hegemônicos da produção do espaço como uma cidade que seja mediação para a realização dos setores econômicos, mas também como essa cidade revela contradições e como ela têm lutas de resistências que evidenciam a desumanidade desses processos político-econômicos em curso.
O trabalho de campo nos permite ver e começar a entender que a cidade é um espaço em disputa, em conflito, que o espaço não é neutro. Se por um lado as estratégias hegemônicas têm avançado na transformação da cidade em ativo financeiro para ganhos econômicos, as populações que são violentadas nesse processo também estão em ação em lutas diversas pelo seu espaço na cidade.
Se a verticalização dos grandes edifícios que vêm sendo construídos nos bairros próximos da orla da cidade e os grandes condomínios fechados que se fecham em relação à cidade, assim como os grandes hotéis e resorts em processo de construção são extremamente visíveis na paisagem, as Ocupações, as resistências e lutas das populações empobrecidas que estão o tempo todo lutando contra o avanço dessa cidade desumana não são tão visíveis assim, mesmo porque há todo um contexto das estratégias hegemônicas de ocultamento dos conflitos.
Por isso o trabalho de campo e ir diretamente nos lugares, conversar com as pessoas que sofrem as expulsões cotidianas e que precisam lutar todos os dias pelo seu espaço na cidade, é uma atividade tão importante para chegarmos aos conteúdos mais concretos da urbanização contemporânea.
Edição: Cida Alves