Paraíba

Coluna

Das Poéticas Antirracistas e Antifascistas

Gabriel em 2005, aos 10 anos, brincando no balanço do quintal de sua casa - Acervo Pessoal - Gabriel Alves
O fascismo já estava aí, quieto, mas à luz do dia, alimentado pelo racismo normalizado na sociedade

Por Gabriel Alves Godoi*

Em uma noite amena de primavera e eu caminhava solitário e estarrecido pelas ruas de Porto Alegre. Havia acabado de passar por mim uma grande quantidade de homens e mulheres, vestidos de verde-e-amarelo, gritando contra cotas raciais, pedindo por maior repressão policial, afirmando que pessoas LGBTQIA+ não deveriam existir e mais uma série de palavras de ordem. Era outubro de 2018 e eu estava de luto.

Eu cresci em uma comunidade carente do Bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre/RS. Uma ocupação de mais ou menos duzentas famílias batizada de “Mangue Seco”. A ocupação se estabeleceu na encosta íngreme de um morro entre a avenida principal do bairro e uma reserva indígena, onde cada trabalhador(a) era corresponsável por toda a vida comunitária. Foram essas famílias que abriram as estradas-de-chão com troncos amarrados na traseira de carros e construíram os postes por onde passava toda a fiação elétrica. A comunidade entrou na justiça para que tivéssemos um código postal (C.E.P.) oficial e buscou parcerias com entidades da assistência social, religiosas, da saúde e da educação para que todos(as) tivéssemos um mínimo de dignidade.

No mangue moravam homens, mulheres e crianças de todas as raças, etnias e culturas, mas a grande maioria era negra, como eu. Meus pais construíram uma casa com um bom pátio onde eu recebia meus amigos e jogávamos bola. Naquela casa eu corria com meu cachorro. Era o local onde eu e meus primos balançávamos e contávamos histórias sobre aventuras e super heróis. São memórias das mais doces que eu tenho para compartilhar. Eu fui muito feliz por lá.

Mas a vida não era fácil. O morro era tão íngreme que ficava inacessível em dias de chuva. A água entrava pelo nosso telhado como se ele nem existisse e tínhamos que dormir na mesma cama, rezando para que nada desabasse. O esgoto corria a céu aberto deixando um cheiro que era difícil de habituar. Mesmo que tivéssemos C.E.P., os correios nunca desciam até o Mangue, pois diziam que éramos muito perigosos(as), violentos(as), uma gente que não-se-sabe. Era o tipo de desconfiança e animosidade que convivemos diariamente, mesmo em uma época na qual as políticas públicas se voltavam para a inserção do povo pobre e trabalhador no mercado de consumo. 

Mesmo que não fosse nomeado, aquilo era o fascismo. Todo(a) morador(a) de ocupação sabe o que é o fascismo, eu o conheço desde pequeno. Quando chegava fim de ano e as casas se preparavam para as festas, era palpável a tensão no ar. Ao cair da noite aparecia a polícia no topo do morro, homens fardados escolhidos à dedo, caras fechadas de ódio, armas pesadas nas costas, cacetetes preparados nas mãos, brancos. Na baixa luminosidade, os uniformes azuis tornavam-se pretos, iguais aos da S.S. Quando chegava perto da meia noite, um técnico da companhia elétrica subia no poste e cortava a luz. Natal e Ano Novo. Era sempre igual. Os policiais ficavam lá a noite inteira, protegendo os postes públicos para que não fossemos religar os “gatos”. 

E lá ficávamos nós, no escuro, sem direito a nada, na noite de Natal. Era o que eles pensavam. Lembrem-se do que eu falei: o mangue é um morro íngreme, seguido de uma terra indígena plana. Depois da Reserva, havia outros bairros ainda mais longes do centro de Porto Alegre e ainda mais negros, Agronomia e Restinga. A escuridão durava pouco, pois logo subiam dos outros bairros as luzes dos fogos de artifício. Eram tantos fogos e a visão tão privilegiada que ninguém precisava se amontoar, era só sentar na varanda de casa - ou no chão da rua - e observar um dos maiores shows de fogos que se poderia ter em toda a cidade de Porto Alegre. Era lindíssimo.
 


Visão privilegiada do horizonte dos moradores do Mangue Seco / Acervo Pessoal - Gabriel Alves

Muitos anos depois eu assisti ao fim-de-ano do terraço de uma colega de trabalho. Não era nem a metade do espetáculo. Lá do alto, na avenida, as luzes ligadas e as casas altas impedem com que os fogos brilhem em todo o seu esplendor. Imagino que os policiais que cortavam a nossa energia elétrica, lá no Mangue, também não vissem o mesmo show de luzes que nós. Eles ficavam lá, cegos com seu ódio, acariciando as suas espingardas, sonhando com a nossa tristeza. No final, é isso que é o fascismo, homens tristes e solitários ao relento e no escuro, sonhando sonhos perversos.

Alguns anos depois minha família se mudou para outra vila. Dessa vez legalizada, no centro da cidade. A polícia às vezes aparecia lá também, procurando os seus vilões imaginários. Esporadicamente levava alguém, sempre algum menino negro. Não me chamava a atenção porque nas vilas éramos bastante variados(as), eu não sabia o que era racismo. Só fui descobrir em 2013 quando entrei na faculdade de Psicologia e vi que lá a imensa maioria é branca. Para achar alguém como eu, só procurando bastante! Alguns(mas) desses(as) brancos(as) pensavam muito nos mesmos vilões imaginários. Pegavam seus manuais de diagnóstico e acariciavam como àqueles velhos policiais acariciavam suas espingardas, sonhando em mirar no peito de alguém.

O fascismo já estava aí, quieto, mas à luz do dia, atacando seus moinhos de vento. Alimentado por um racismo abjeto e normalizado pela nossa sociedade. Precisamos ter coragem de falar a palavra. R-A-C-I-S-M-O. Não podemos ter vergonha da sua métrica, da forma como enche nossas bocas. R-A-C-I-S-T-A-S com medo de pretos como eu, com nojo de gente que vive e convive com pretos e pretas, com medo das nossas culturas e das nossas formas de religiosidade, idealizando o formato dos nossos corpos. R-A-C-I-S-T-A-S que foram protegidos durante toda a história da nossa pátria e que nos fazem ter que conviver com eternas convulsões sociais autoritárias. 

Por isso que, por mais estarrecido que eu tenha ficado em Outubro de 2018, eu não estava surpreso, mas sim de luto. A tristeza por certo tempo e pelas pessoas que seriam tolhidas das oportunidades que eu tive. Tristeza porque eu sabia que seria um massacre. Só não imaginava as proporções. Nós vivemos a maior tragédia dos nossos tempos: a pandemia de covid-19 e a morte de mais de 700.000 pessoas por conta de um projeto necroliberal de genocídio, coisas que não temos o direito de esquecer. Vencemos agora para vencermos também amanhã. Para vencermos para sempre.

Vencemos para nunca mais esquecer que o fascismo e o racismo dizem respeito a mesma corrente que extrai a vida do povo trabalhador, que rouba as riquezas da nossa terra, que mata e destrói em nome de uns poucos multibilionários. O fascismo é, em última instância, a cena de um homem branco no escuro, sozinho, assustado e frágil. Tão bêbado em seu ódio, tão alienado pela sua própria perversão, que não consegue sequer observar as belas luzes do céu. 

 

*Psicólogo, Especialista em Direitos Humanos e Políticas Públicas, Mestre e Doutorando em Psicologia Social. Pesquisa e escreve sobre políticas de saúde, antirracismo, Direitos Humanos e COVID-19. Pesquisador no Núcleo pesquisas ELÉÉKÒ - Agenciamentos Epistêmicos Antirracistas Decoloniais; A produção do texto foi feita em parceria com a Comunidade Colaborativa Afro-Ameríndia – COCAM/RECOSEC/UFPB.
    

Edição: Polyanna Gomes