intolerância religiosa é uma realidade que arrasa comunidades [..] marcada pelo racismo
Por Edilson Targino de Melo Filho*
O racismo é a tecnologia de poder que torna possível o exercício da soberania (ALMEIDA, 2019, p. 116).
Em um país marcado pelas diversas formas de racismo a intolerância parece apontar cada vez mais o debate acerca das vivências religiosas, principalmente, porque ela carrega um desejo de anular a crença associada aos povos originários. Discursos extremistas, principalmente de líderes religiosos e políticos, trazem à baila uma gama de preconceitos, alimentando a intolerância e falta de respeito com as pessoas adeptas de religiões afro-brasileiras.
A intolerância religiosa é o ato de discriminar, ofender e rechaçar religiões, liturgias e cultos, ou ofender, discriminar, agredir pessoas por conta de suas práticas religiosas e crenças. Este ato é percebido ao longo da história, porque, no passado, eram comuns o pacto e a institucionalização de religiões, principalmente, cristãs, e os governos, permitindo uma ligação danosa que acarretava em perseguição e morte para quem estava fora deste escopo.
Há 15 anos foi promulgada a Lei que institui o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007. O dia 21 de janeiro foi escolhido em memória de Iyalorixá Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda, do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum (BA), vítima de intolerância religiosa. Mãe Gilda de Ogum teve seus problemas de saúde agravados em decorrência dos ataques de ódio e agressões verbais e físicas que sofreu de seguidores da Assembleia de Deus dentro de seu próprio terreiro, em Itapuã. Como consequência desses ataques ela acabou infartando e falecendo no dia 21 de janeiro de 2000.
Acreditar que é possível viver em uma sociedade marcada pela igualdade de direitos nos motiva a enxergar um horizonte onde a diversidade religiosa seja respeitada. Entretanto, intolerância religiosa é uma realidade que arrasa comunidades em todo o mundo e se mostra cada vez mais enraizada nas sociedades e marcada pelo racismo.
No Brasil, no ano de 2022 foram registradas 513 denúncias relacionadas à liberdade religiosa, dados do Ministério dos Direitos Humanos (MDH), apontam para o total de 647 violações que correspondem a qualquer fato que atente contra os direitos humanos da vítima. Os números são assustadores, primeiro porque passamos a conviver com a iminente ameaça a lugares e pessoas que têm seu direito de liberdade e de crença violado. O direito da liberdade religiosa está assegurado na Constituição: "É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias" (art. 5º, inc. VI).
Segundo o pesquisador Sidnei Nogueira (2020, p. 41), Babalorixá, do Ilé Àsé Sàngó:
[...] ninguém é naturalmente preconceituoso. Toda forma de preconceito emerge de uma postura social, histórica e cultural que pretende, a um só tempo, segregar para dominar e, proporcionalmente, determinar e manter um padrão, marcadores de prestígio e de poder.
No caso do Brasil, o marcador religioso é forçadamente mantido e identificado pela sociedade como sinônimo de amor, idoneidade, honestidade, caridade, humildade. Este marcador refere-se apenas às religiões cristãs, como ideal para conduzir a vida de todos os seres humanos. Portanto, qualquer outra religião que esteja fora do espectro cristão será estigmatizada, e mais ainda, será violentada, assim como as pessoas que a praticam.
Evidentemente, o passado colonial e escravagista brasileiro alicerça os muros da intolerância. É por isso que ninguém nega que o reconhecimento do Outro como seu semelhante ou como um igual sempre foi um problema (NOGUEIRA, 2020, p. 43), portanto a negação e a falta de reconhecimento do Outro fizeram com que a humanidade testemunhasse as várias violências à chamada liberdade religiosa.
Historicamente, sabe-se que o fenômeno da intolerância religiosa tem registros a partir da “caças às bruxas”, reconhecido pela bula papal Summis Desiderantes Affectibus, de dezembro de 1484, do papa Inocêncio VIII. Outros registros como o holocausto, causando o genocídio de aproximadamente 6 milhões de judeus pelo regime nazista, que além da intolerância religiosa perseguiu outras minorias como pessoas negras, ciganas e a população LGBTQIAP+ configuram marcos que encerram a vida de pessoas.
Ao longo do tempo, a liberdade religiosa passou a ser reconhecida como um direito, consequência de movimentos contemporâneos que buscam valorizar e respeitar a dignidade humana.
Neste sentido, os espaços acadêmicos e escolares são um instrumento importante para a promoção de debates e a criação de ambientes de diálogos para combater a intolerância. Porque estes espaços de educação garantem a liberdade para discussão ao mesmo tempo que formam pessoas para enfrentar o racismo, combater as opressões e construir ações para a diversidade.
Assim, estes espaços tornam lugares de empoderamento e fortalecimento das pessoas que por muito tempo foram marginalizadas, esquecidas e mortas somente por pertenceram a religiões não tradicionais brancas, mas entende-se que “os oprimidos devem empoderar-se entre si e o que muitos e muitas podem fazer para contribuir para isso é semear o terreno para tornar o empoderamento fértil, tendo consciência, desde já, que ao fazê-lo entramos no terreno do inimaginável” (BERTH, 2019, p 153).
Esse é de fato um caminho para um futuro onde a intolerância religiosa, o racismo e todas as suas facetas não sejam mais aceitas, sejam criminalizadas e combatidas com o rigor da legislação.
No dia 11 de janeiro, deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promulgou a Lei 14.532/23 que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo. Com a alteração na legislação sobre Crime Racial e o Código Penal, esse tipo de injúria pode ser punida com a reclusão de 2 a 5 anos e a pena pode ser dobrada se o crime for cometido por duas ou mais pessoas.
A injúria racial é a ofensa a alguém, um indivíduo, em razão da raça, cor, etnia ou origem. E o racismo é quando uma discriminação atinge toda uma coletividade ao, por exemplo, impedir que uma pessoa negra de acessar lugares por causa da cor da pele.
Espera-se que com a nova lei os crimes cometidos contra pessoas e religiões sejam punidos e que as vítimas encontrem amparo para realizar as denúncias.
É dever de todas as pessoas conviver e valorizar a diversidade, contribuindo para o respeito integral e para aceitação de todas as diferenças religiosas.
PARA SABER MAIS
ALMEIDA, Bernardo Zahran Rache de Almeida et. al. Religiosidade como direito: do passado ao presente. Politize, 2022. Disponível em: https://www.politize.com.br/equidade/blogpost/religiosidade-como-direito/?gclid=CjwKCAiAzp6eBhByEiwA_gGq5HW5znqKVGLIWmBs-PSB2-fwG5eZBU9HuImfuz6cEJaEBvoB7kV-QhoCdx0QAvD_BwE. Acesso em 18 jan. 2022.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro ; Pólen, 2019.
BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
FONSECA, Ivonildes da Silva. Mesas, giras, toques e sambas: intolerância e legitimação dos cultos afro-brasileiros paraibanos. 2011. 194 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - Universidade Federal da Paraíba, 2011.
MOLINA, Danilo. A intolerância religiosa não vai calar os nossos tambores. Carta Capital, 2022. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/diversidade/a-intolerancia-religiosa-nao-vai-calar-os-nossos-tambores/. Acesso em 18 jan. 2022.
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2020.
*Doutor em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Membro do GT Relações Étnico-Raciais e Decolonialidades da FEBAB − Associação Profissional de Bibliotecários da Paraíba. Bibliotecário-Documentalista CCA/UFPB. E-mail: [email protected]
Edição: Heloisa de Sousa