Guilherme Boulos (PSOL/SP) busca um Projeto de Lei para dar mais força às cozinhas solidárias
Por Alexandre Cesar Cunha Leite *
Nesse exato momento em que você inicia a leitura desse texto, o Brasil registra, com dados de 2022, números assustadores de pessoas passando fome. Para não tomar muito espaço na sua leitura vou resumir: 33 milhões de pessoas em condição de fome ou em risco de fome iminente e 125 milhões de pessoas que convivem com a fome em algum nível. Seja usando a medição presente no conceito de insegurança alimentar (leve, moderada ou severa) seja usando o conceito de risco de fome, temos metade da população brasileira vivendo em algum nível de vulnerabilidade que coloca em risco sua alimentação. Mas piora. Piora porque durante dos últimos quatro anos não houve política pública destinada ao combate sério e engajado dessa catástrofe. Piora porque o que existia de política pública, antes da tragédia que foi o governo Bolsonaro, foi duramente golpeada e desmontada. Piora porque durante esse mesmo período o mundo passou por uma pandemia e, consequência direta ou não, os preços dos alimentos subiram em níveis muito acima à inflação média de preços. As informações acima ilustram uma situação terrível, certo? Sim, faltam adjetivos para classificar o drama vivido por essa enorme parcela da população. Porém, é necessário inserir um agravante: a insegurança alimentar no Brasil não pode ser atribuída a escassez de alimentos, mas sim de acesso a eles.
O cenário está resumidamente apresentado. Mas como objetivo é pensar em alternativas para atenuar a grave situação, volto-me para o foco. O governo eleito e que completa pouco mais de um mês de ação mostra-se muito sensível à crise da fome no Brasil. O retorno das políticas públicas ativas na tentativa de combater a fome está em processo de formação (ou retomada). A urgência é gritante. E sabe-se que, em consequência do projeto genocida dos últimos 4 anos, urgências é que não faltam no Brasil de 2023. O quadro indica que o Estado (e o atual governo) precisará de lançar mão de instrumentos políticos alternativos e complementares para debelar uma situação tão séria como é a fome no Brasil.
No auge da pandemia o pesquisador Walter Belik (UNICAMP) escreveu um texto em que ele trazia a informação de que muitas pessoas no Brasil só tinham acesso a alimentação devido à caridade. À medida que a imagem desoladora das consequências da pandemia foram se apagando das nossas memórias, a solidariedade e caridade seguiu o mesmo trajeto. Projetos sociais, ações coletivas e individuais e iniciativas solidárias voltadas ao problema do acesso à alimentação adequada hoje sofrem com uma dura queda na disponibilidade de recursos para manter suas atividades. Sim, as doações caíram. Muito em consequência, dentre outros fatores, da queda da renda real média da população e da alta nos preços. Ou seja, um ator representativo e com capacidade descentralizada de operação encontra-se fragilizado diante das condicionantes atuais: as cozinhas solidárias.
As cozinhas solidárias têm um enorme potencial político e social. Há maior flexibilidade de atuação; há fluidez e alcance. Sua atuação descentralizada associada ao maior conhecimento das realidades locais tende a se converter em uma grande vantagem operacional. As ações, apesar de menor escala, reúnem condições de chegar à assentamentos, ocupações, população em situação de rua e em comunidades vulneráveis e periféricas. Há velocidade de resposta. Cozinhas solidárias (e/ou comunitárias) podem ser um poderoso meio de combate à fome, de forma mais ágil e emergencial. É preciso mencionar que as cozinhas solidárias podem ser um importante espaço de conscientização e mobilização política. têm um papel muito importante não só em reduzir o impacto do difícil acesso ao alimento, mas também de conscientizar, de difundir conhecimento e ação política de responsabilidade civil,
Está ocorrendo uma mobilização em prol das cozinhas solidárias. O deputado Guilherme Boulos (PSOL/SP) está, associado com outros diversos atores da sociedade, levantando essa discussão em torno de um Projeto de Lei (PL) para dar mais força às cozinhas solidárias. Cozinhas locais produzindo alimentação destinada à população vulnerável, subsidiadas pelo governo, levando alimentação gratuita e de qualidade à população em situação de insegurança alimentar que são iniciativas e geridas pela sociedade civil. O cerne da proposta consiste em publicação de editais públicos para financiar essas cozinhas usando recursos públicos e tendo como parâmetros o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Excelente iniciativa. Porém, há que se entender alguns desafios iminentes. Não vou levantar todos pois isso mereceria um texto mais denso e mais extenso. Vou ressaltar um desafio de entrada e de acesso aos recursos. A questão burocrática para que essas cozinhas tenham acesso à recursos públicos. Para que os administradores, gestores e criadores dessas cozinhas solidárias alcancem recursos públicos, há uma trava lega e fiscal: o CNPJ.
O Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica é a forma como a Receita Federal identifica empresas, associações, organizações e acompanha suas movimentações financeiras. Logo, incontornável para que haja fiscalização das atividades realizadas e dos montantes movimentados. Justo diria. Mas o CNPJ é a porta de acesso aos recursos públicos que eventualmente estariam dispostos nesses editais. E o que se observa é que a exigência legal e fiscal atual, via, de partida, CNPJ, é também excludente e complicadora. Explico: para que se alcance o CNPJ a cozinha solidária precisa ter uma constituição legal, associação por exemplo, que requer entre outros elementos, estrutura jurídica e maturidade institucional: um estatuto por exemplo. E sabe-se que várias iniciativas são de origem pessoal, caritativa, grupos de pessoas que doam tempo, mas não se constituem, por exemplo, como uma organização social de fins públicos. Mas vamos lá, considerando que o CNPJ é incontornável, pode-se tentar desburocratizar um pouco os critérios legais relacionados à essas associações civis de interesse público.
Atualmente, mesmo uma organização sem fins lucrativos tem obrigações fiscais mensais. Isso implica em destinar tempo e pessoas para acompanhar a legislação para a entrega de declarações à Receita Federal. Então, para além do componente entrada e acesso aos recursos, há um componente operacional que se não demandar tempo, demandará recursos, como a contratação de assessoria profissional. Um PL destinado a aumentar a atuação das cozinhas solidárias e até mesmo estimulá-las precisa considerar a possibilidade de reduzir os requisitos burocráticos que tendem a obstaculizar a atividade fim. E vale dizer, a proposta do PL é um enorme avanço, e por isso mesmo é que há que se ver a iniciativa com esperança e alegria e, contribuirmos na tentativa de tornar o Projeto de Lei operacional e acessível.
*Professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), membro do FomeRI (Grupo de pesquisa em Fome e Relações Internacionais da UFPB), criador do SACIAR (@_saciar)
Edição: Polyanna Gomes