"O processo de alimentar-se supera a lógica da sobrevivência, sendo esse um ato histórico e cultura"
Ellen Maria Oliveira*
Mirna Lomanto*
No início de março, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou uma plataforma de dados que possibilita ao público ter conhecimento sobre os indicadores globais do custo da alimentação saudável. É a FAOSTAT , que possui cerca de 20 mil indicadores e analisa mais de 245 países e territórios. Calculando e integrando dados, os relatórios desenvolvidos pela instituição têm o objetivo de garantir uma referência do custo de uma dieta saudável (CoAHD), de modo a acompanhar os avanços das regiões para tornar mais acessível a todos uma alimentação saudável.
A alimentação pode ser analisada como uma base fundamental da existência humana. Simultaneamente, o processo de alimentar-se supera a lógica da sobrevivência, sendo esse um ato histórico e cultural, da utilização de técnicas milenares e de invenções cotidianas, que possibilita também o intercâmbio de experiências e vivências. As formas de produção, distribuição e consumo são fundamentais para analisar a superação da fome em seus estados mais alarmantes, como aqueles que remetem à inanição, mas também nos termos apontados pela FAO, relacionados aos custos de uma alimentação saudável, condição inerente à discussão sobre o atingimento genérico da segurança nutricional e da soberania alimentar.
Segundo David Laborde, diretor da Divisão de Economia Agroalimentar da FAO, “Acabar com a fome, a insegurança alimentar e a desnutrição em todas as suas formas (incluindo desnutrição, deficiências de micronutrientes, sobrepeso e obesidade) é mais do que garantir comida suficiente para sobreviver: o que as pessoas comem também deve ser nutritivo”. Mas assim como é colocado na base de dados da FAO, o fator renda altera a acessibilidade aos alimentos de formas diferenciadas ao redor do mundo. Dentro desse contexto, a instituição divulga que, em 2020, 3,1 bilhões de pessoas não conseguiram pagar por uma alimentação saudável, sendo que, em comparação com 2019, houve um aumento em 112 milhões de pessoas que não tiveram condições de pagar por uma alimentação saudável .
As regiões que enfrentaram por séculos os processos colonialistas e imperialistas, que atualmente formam a periferia global do capitalismo, marcadas pela desigualdade estrutural, são as que apresentam maior custo para alimentação saudável. Em 2020, a região mais afetada foi a América Latina e o Caribe, com o maior custo de uma dieta saudável (US $3,89 por pessoa por dia), depois Ásia (US $3,72) e África (US $3,46). No período entre 2019/2020, a Ásia teve o maior crescimento (4%) no custo de uma dieta saudável, o aumento foi de aproximadamente 78 milhões de pessoas. A instituição chama atenção também para o fato de que em 12 países na África, mais de 90% dos habitantes não possuem condições para garantir uma alimentação saudável de frequentemente.
Os impactos da insegurança alimentar e nutricional englobam as questões relativas à saúde, como problemas com o sistema imunológico, desnutrição, sobrepeso, anemia, comprometimento no desenvolvimento cognitivo, ou em casos mais severos a própria morte. Mas, os altos custos ao acesso à alimentação saudável comprometem também demais aspectos para a vida digna da população, historicamente negada à classe trabalhadora do Sul Global. Aspectos que se enquadram em direitos básicos, como educação, habitação e lazer, passam a ser entendidos como privilégios nas sociedades com maiores índices de desigualdade social (MALUF, 2007).
Agindo em consonância com a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, o Quadro Estratégico 2022/2031 da FAO é essencial para transformar os sistemas agroalimentares em arranjos mais eficientes, inclusivos, resilientes e sustentáveis, visto que seus objetivos visam melhores produção, nutrição, vida e meio ambiente para todos, sem esquecer ninguém. Dessa forma, a iniciativa da FAO de gerar evidências através dos indicadores globais é fundamental para a elaboração de políticas públicas de garantia e manutenção ao acesso adequado à alimentação saudável, que respeitem as especificidades culturais e sociais das diferentes sociedades.
Contudo, é de suma importância que, além da observação do desenvolvimento de tais projetos, sejam construídas análises críticas sobre a ordem alimentar vigente, fundamentada em um sistema agroalimentar 'financeirizado', cujo interesse primário é a maximização do lucro através da produção de baixo custo, normalmente recorrendo à utilização de agrotóxicos, alterações biogenéticas, ou ao multiprocessamento em detrimento daquilo que deveria ser direito primário de todo e qualquer ser humano: o alimento saudável, variado e de qualidade, para todas as regiões e todos os povos.
**Graduandas de Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba. Membros do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB (fomeri.org)
Edição: Polyanna Gomes