Paraíba

Coluna

Diários e Cartas: escrevivências de autoras negras

Carolina Maria de Jesus (Brasil) e Françoise Ega (Martinica). - Quatro Cinco Um, a revista dos livros, 2021.
A França tem Sartre, nós temos Carolina! (Carolina Maria de Jesus. Casa de Alvenaria, 1961.)

Por Elio Flores*

 

Para Conceição Evaristo, em entrevista para a agência de notícias Itaú Social (09/11/2020) escrevivência – escrever, viver, se ver – além de ser um termo histórico,  “é um caminho já trilhado por uma autoria negra”. Disso se pode dizer das obras de Carolina Maria de Jesus (Brasil, 1914-1977) e  Françoise Ega (Martinica, 1920-1976), duas escritoras negras que, através de diários e cartas, buscaram romper o silêncio, invisibilidade e subalternidade, pesada trilogia de dominação racial no capitalismo contemporâneo.    

Na primeira metade do século XX, Carolina deslocou-se de Minas Gerais para São Paulo levando para si lembranças de infância com dores raciais que apenas se avolumam na metrópole do capitalismo brasileiro, a partir de seu insalubre cotidiano: moradora na favela e catadora de lixo. Nessa mesma temporalidade, Françoise Ega deixou a Martinica – ilha das Antilhas − para trás, atravessou o Atlântico e se fixou na francesa e mediterrânica cidade de Marselha, onde conhecerá o racismo na própria metrópole do colonialismo.  

Dessas andanças e peripécias afro-diaspóricas surgiram obras para a posteridade que, por razões coloniais, passaram por mãos francesas. Carolina escreveu suas memórias de infância e, já no final da vida, entregou os originais para duas jornalistas francesas que a entrevistaram no Brasil. Depois da morte de Carolina, em 1977, os originais apareceram publicados na França e no Brasil. Assim veio a lume Diário de Bitita (França, 1982; Brasil, 1986). Françoise Ega também publicou suas vivências da infância e juventude, como pessoa negra subalternizada, na província colonial das Antilhas francesas, a ilha da Martinica. Trata-se de seu único livro publicado em vida cujo título remete à cultura negra das Antilhas e do Caribe, Le temps des madras (França, 1966; 1989).  

Indagações pertinentes devem estar na mente da leitora e do leitor. Qual a relação das duas autoras negras? Como e por que narraram, mesmo com pouca experiência escolar, suas escrevivências na segunda metade do século XX? A verdade é que, escrevendo diários e cartas, Carolina e Françoise viajaram tempos e lugares e assinaram vidas incomuns, “almas de gente negra”. 

Bem, é preciso imaginar Françoise Ega entrando numa  banca de revistas em Marselha para comprar sua revista preferida, a então Paris Match, cuja equivalente no Brasil, poderia ser O Cruzeiro, que entrevistou Carolina em 1959. Eram revistas destinadas às classes médias – das direitas às esquerdas − com temas internacionais, políticos, variedades e muita fofoca de celebridades. Por dentro das urgências urbanas a que estavam submetidas, Françoise e Carolina se formavam e se informavam, quando era possível aproveitar as brechas do descanso, depois dos longos dias de trabalho árduo e cotidiano. 

Françoise Ega comprou a Paris Match (edição  n.º 682, 05/05/1962), cuja capa trazia nada menos que a italianíssima Sophia Loren, então melhor atriz do cinema ocidental, ganhadora do Oscar com o filme Duas Mulheres (1960), um drama sobre violência sexual durante a Segunda Guerra Mundial. O título da reportagem, assinada por Robert Collin, “Elle a écrit un best seller sur du papier ramassé dans les poubelles” (Ela escreveu um best-seller com papel recolhido no lixo), sumariava sete páginas (p. 22-23, 28, 32, 36, 40, 43) com o perfil biográfico de Carolina, fotografias da autora na favela, autografando a sua obra e na praia de Copacabana sendo tietada por banhistas. Chamaram a atenção de Françoise passagens dos diários (em versão francesa) da autora brasileira Carolina Maria de Jesus, daquela que se tornaria sua obra mais lida e difundida no mundo, Quarto de Despejo: diário de uma favelada (Brasil, 1960).  


Primeira edição brasileira de Quarto de Despejo: diário de uma favelada. / Livraria Francisco Alves, 1960.

 

Sabe-se que duas edições da obra caroliniana foram traduzidas para o francês com o título Le Dépotoir (Paris, 1962; 1965). O subtítulo foi suprimido da tradução francesa, mas o título comunicou bem a ideia de Carolina aos olhos de Françoise: quarto de despejo (a favela) significava o depósito de lixo onde viviam (e vivem) os pobres e subalternos no iconoclasta (e modernista?) capitalismo paulistano. Quando Carolina começou a escrever seus diários, em torno do ano de 1955, um pouco mais tarde, provavelmente no início do ano de 1960, Françoise iniciou  suas “memórias antilhanas”, uma vez que residia na França desde 1946.  

Françoise chegou a adquirir e ler a edição francesa do livro de Carolina? Essa ainda é uma hipótese em aberto – não tenho essa informação − mas o que ela leu na reportagem da revista sobre Quarto de Despejo a impulsionou para o tempo presente, seu cotidiano como empregada doméstica em Marselha. Diria mesmo para a interseccionalidade de raça, gênero e classe, pois, ainda no mês de maio, Françoise começou a escrever cartas, na forma de diário, para Carolina. E assim praticou a escrevivência  de maio de 1962 até 23 de junho de 1964. Dessa escrevivência foi publicada a obra póstuma, Lettres à une Noire: récit antillais (1978), dois anos após o falecimento da autora.


Primeira edição francesa de Cartas a uma Negra: narrativa antilhana. / Editora L’Harmattan, 1978.

O parágrafo de abertura da obra procura outra escritora, “uma irmã de cor”, expressão que foi, certa vez, usada por Carolina: 

Pois é, Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irmãs. Todos leem você por curiosidade, já eu jamais a lerei; tudo o que você escreveu, eu conheço, e tanto é assim que as outras pessoas, por mais indiferentes que sejam, ficam impressionadas com suas palavras. Faz uma semana que comecei estas linhas, meus filhos se agitam tanto que não tenho muito tempo para deixar no papel o turbilhão de pensamentos que passa pela minha cabeça. Estou indignada. Uma jovem da minha terra me contou coisas sobre a sua vida na casa onde trabalha que jurei verificar. Ganho um dinheiro e já posso fazer um balanço: sou faxineira há cinco dias, meus empregadores estão incomodados porque claramente não sou uma recém-chegada; falo de Champs-Élysées, Touraine ou da igreja Notre-Dame de la Garde com muita naturalidade. Eles não podem, sem mais nem menos, me chamar de Marie ou Julie. Aliás, nem estão preocupados com isso: não me chamam de nome nenhum (Ega, 2021, p. 5). 

O trabalho doméstico poder ser visto como uma espécie de imperativo social para a mulher negra nas sociedades contemporâneas e racializadas. A relação tensa entre capital e trabalho não começa na fábrica, mas no cotidiano que exaspera um território entre a moradia precária, a rua e a casa patronal. Nenhum tipo de capitalismo e nem qualquer burguesia abdicaram das opressões intimistas e patriarcais. O registro de Carolina, datado de 09 de agosto de 1958, deve ter impactado muito a indignação de Françoise. No Brasil, havia perguntas capciosas sobre um provável “livro comunista”:

Deixei o leito furiosa. Com vontade de quebrar e destruir tudo. Porque eu só tinha feijão e sal. E amanhã é domingo. Fui na sapataria retirar os papeis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhável escrever a realidade (JESUS, 1960, p. 105). 

Esse realismo econômico e social da “Paulicéia desvairada”, printado por Carolina, atravessa o Atlântico e chega à moradia de Françoise, pois seu marido é o primeiro a tentar “desescrevê-la”. Eis o testemunho atilado de Françoise: “Escrever é bonito, mas, como diz meu marido, não se come o papel à vinagrete”. Carolina não se cansava de reiniciar o seu diário e, resiliente, anotava: “não poderei viver sem escrever porque os dramas, continuam acontecer enquanto vivemos...”. 

Françoise, noutro registro, ainda em maio de 1962, ao confessar que “descobriu Carolina no ônibus” (lendo a Paris Match), revela o quanto a dupla condição laboral e familiar da mulher negra implica o aprisionamento de suas potencialidades intelectuais e literárias. Ela também ressalta as aproximações com Carolina, mulheres negras querem se ver na escrita, isto é, para além do pão de cada dia, ainda que sempre à espera de uma mudança:   

Carolina, você nunca vai me ler; eu jamais terei tempo de ler você, vivo correndo, como todas as donas de casa atoladas de serviço, leio livros condensados, tudo muda rápido demais ao meu redor. Para escrever alguma coisa, preciso esconder meu lápis, senão as crianças somem com ele e com meus cadernos. Há noites em que os encontro bem fininhos. Já meu marido me acha ridícula por perder tempo escrevendo bobagens; por isso, ele esconde cuidadosamente sua caneta. Como você conseguia segurar um lápis com a criançada à sua volta? Para os meus filhos, sumir com um lápis é normal, sempre tem o da mãe ao alcance. Somente uma coisa os faz parar: quando digo que temos em casa apenas o dinheiro do pão, eles  evitam por um breve período, perder seus materiais. (...) Meu marido diz: “O importante é o pão de cada dia, o resto a gente dá um jeito”. Acho, Carolina que você conhece essas palavras. Na favela, você nunca foi capaz de pensar em nada além do pão de cada dia. Penso que é isso que me aproxima de você, Carolina Maria de Jesus (Ega, 2021, p. 7). 

Parece que no Brasil, até recentemente, ignorava-se ou não se dava importância que as Cartas a uma Negra: narrativa antilhana estavam endereçadas para a autora de Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus. A obra de Françoise Ega somente viria a ser traduzida e publicada no Brasil mais de três décadas depois, no ano de 2021.   


Capa do livro de Françoise Ega publicado no Brasil. / Editora Todavia, 2021.

 

A pesquisadora Regina Dalcastagné, para quem a literatura brasileira contemporânea “é um território contestado”, foi pioneira no Brasil em observar a importância desse evento epistolar entre Carolina e Françoise que chamou de “Cartas lançadas a um oceano fora do tempo”, em artigo publicado no Jornal Literário Pernambuco (2008).  

Creio que seus esforços não foram em vão para se pensar o universo literário caroliniano traduzido, isto é, escrevivido noutros idiomas e variações culturais: “Françoise Ega tenta por várias vezes estabelecer contato com Carolina Maria de Jesus. Chega a enviar o marido em busca do jornalista da Paris Match que escreveu sobre Quarto de despejo, mas, pelo jeito, nunca obteve resultado. Não consegui localizar, até agora, nenhum estudo, sequer algum comentário sobre seu livro no Brasil. Em notas, artigos e teses em inglês, francês e espanhol, o foco se concentra em Ega, sem muito cuidado em relação à destinatária de suas cartas”.  

Mais recentemente, Samanta Vitória Siqueira escreveu sobre o “encontro de mulheres diaspóricas” e, junto com Karina de Castilhos Lucena, também produziu artigo sobre biografia e obra de Françoise Ega, com o sugestivo título “Aquela que diz não à sombra”, ideia poética que vem de Aimé Césaire. Com a tradução da obra Cartas a uma Negra o posfácio “Tão longe, tão perto” de autoria de Vinícius Carneiro (também tradutor) e de Maria-Clara Machado, a quem Regina Dalcastagné oferece seu artigo por “ter sido ponte”, deixa-se para trás “o silêncio altissonante” e o “vazio crítico” da destinatária, que a própria  emissora das cartas, reiteradamente, considerava assim: “Velha amiga Carolina”.     

Desse modo, para concluir as afirmações sugeridas por essas várias leituras, é digno destacar que Françoise, ao criar o fato literário com Carolina – “escrever, viver e se ver” nas palavras de Conceição Evaristo −, afirma que tudo aconteceu, “naquele lugar onde nossas almas se cruzam”. É disso que se trata, esse imenso oceano, o “Atlântico negro”, longe das calmarias navegáveis, é constantemente assolado pelas escrevivências de mulheres negras, mulheres transatlânticas, conforme a expressão de Beatriz Nascimento.   

 

PARA SABER MAIS 

 

DALCASTAGNÈ, Regina. Cartas lançadas a um oceano fora do tempo. In: PERNAMBUCO – Jornal Literário da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, 2008. http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/2008-cartas-lan%C3%A7adas-a-um-oceano-fora-do-tempo.html?fb_comment_id=2207256832637329_2208896619140017

 

EGA, Françoise. Cartas a uma Negra: narrativa antilhana. São Paulo: Editora Todavia, 2021. 

 

EVARISTO, Conceição. Carolina Maria de Jesus: como gritar no “quarto de despejo” que “Black is beautiful”? In: PINTO, Ana Flávia Magalhães; CHALHOUB, Sidney.  (Orgs.). Pensadores  negros – Pensadoras  negras:  Brasil,  séculos  XIX  e  XX.  Cruz  das Almas;  Belo Horizonte: Edurb; Fino Traço, 2016, p. 299-318. 

 

FLORES. Elio C. Palavras Afiadas: memórias e representações africanistas na escrita de Carolina Maria de Jesus. In: Clio – Revista de Pesquisa Histórica, v. 28, n. 1, UFPE, 2010, p. 1-27. https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/viewFile/24239/19661 

 

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1960. 

 

______ Vida por Escrito. Portal Biobibliográfico de Carolina Maria de Jesus. https://www.vidaporescrito.com/ 

 

SIQUEIRA, Samanta. “Tudo o que tu escreveste, eu sei” - a tradição de uma literatura escrita por mulheres diaspóricas: o encontro da brasileira Carolina Maria de Jesus com a martinicana Françoise Ega. In: Nau Literária, v. 17, n. 1. Porto Alegre, PPG-LET UFRGS, 2020 p. 129-147. https://doi.org/10.22456/1981-4526.104860 

 

*Professor titular aposentado do DH/CCHLA/UFPB. Pesquisador do NEABI-CCHLA/UFPB.          

 

Edição: Heloisa de Sousa