Paraíba

Coluna

Reconhecer e respeitar as subjetividades: a escuta das professoras negras

Capa da obra publicada em 2021 pela Editora Zahar. - Reprodução
a mulher negra precisa sempre se impor para evitar ser atacada.

Por Livia de Mello Silva Lemos*  

 

Quando iniciei minha pesquisa de mestrado como pesquisadora e mulher negra de pele clara, tinha uma parte de mim que romantizava o estudo. Eu esperava ouvir das professoras negras que me contaram suas histórias, uma consciência da identidade negra bem estabelecida pelas dores e superação de estudar no interior (longe da metrópole do Rio de Janeiro) e um ativismo bem marcado contra o racismo da sociedade brasileira.  

Mas a realidade extrapola e contrapõe idealizações. E como é delicioso surpreender-se, ouvir e enxergar a multiplicidade humana, defrontei-me com narrativas que afirmavam nunca terem sofrido racismo.  

Falar é um momento de cumplicidade e confiança. Ouvir torna-se neste contexto, uma responsabilidade. O cronograma a ser cumprido para a feitura do meu texto acadêmico deu lugar a minha preocupação pela escuta. 

Registrei afirmações de orgulho da identidade negra, mas sempre construída em consonância com o que o branco alcançou ou poderá alcançar. Não uma identidade firmada em autoestima negra, orgulho de pertencer ao povo negro. Foi neste ponto, depois de ter reunido material através das entrevistas realizadas com dez professoras autodeclaradas negras e que lecionam em diversas áreas na educação básica municipal, que conheci a pessoa, a escrita e o pensamento de Neusa Santos Souza. Seu livro Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (primeira edição de 1983) apresentou a mim a complexidade da subjetividade da pessoa negra. Essa junção entre psicanálise e questão racial me ofereceu também mecanismos para tentar analisar por que as respostas foram tão diferentes do que eu esperava ser tão óbvio a partir dos atravessamentos que o racismo causa nas pessoas negras. 


Neusa Santos Souza. Baiana, psiquiatra e psicanalista (1948–2008). / Reprodução

Os relatos de “não racismo” de algumas das entrevistadas desta pesquisa confrontavam-se em muitos momentos com episódios claros de racismo, mas que estas não entendiam como racismo. Talvez por não terem repertório suficiente para ler o racismo em suas estruturas mais sutis e camufladas da nossa sociedade. Em outro viés, reproduzo abaixo uma fala que muito me chamou atenção e na qual a leitura de Neusa faz todo sentido. 

Se alguém falar alguma coisa sobre o negro comigo, ahhh porque o negro... eu logo falo: óh, até hoje eu não deixei de ser nada que eu quis ser. Que o branco é, o vermelho, o pardo, eu sou. Se o branco casa eu sou casada, se o branco tem filho eu tenho filho, se o branco fez curso superior, eu fiz também, então... o que que me impediu, por ser negra... Eu sempre falo que sou igual ao branco também, eu faço o que o branco faz (Entrevistada A, 49 anos, grifos nossos). 

Neusa oferece-nos a reflexão de que a mulher negra precisa sempre se impor para evitar ser atacada. Ele precisa ser visto como uma pessoa que detém valores para assim não ser discriminado, para ser visto como digno de respeito. A autora relata que as pessoas negras que ela entrevistou introjetam, assimilam e reproduzem sendo como seus, os discursos dos brancos (SANTOS, 1983, p. 32). Na pesquisa de campo, o fato de terem estudado e terem tido acesso ao ensino formal aparece nas falas das professoras como uma forma de afirmação. Muito embora aliado aos questionamentos de si e ao desempenho de sua boa prática profissional. Pensar no porquê essas mulheres negras se veem assim, de maneira tão distorcida ou cruel, não é difícil. Não encontramos na sociedade brasileira aparatos que nos façam nos amar. Nossos traços, história, saberes são geralmente demonizados, subalternizados, menosprezados ao longo da nossa vida pessoal e escolar. 

Baixa autoestima foi um dos elementos muito presentes nas falas das professoras. Uma necessidade de se provar boa no seu ofício ou outras vezes, duvidar de fazer um bom trabalho. 

Eu não escolhia alfabetização, nunca, por nada. Eu não gostava. Só que eu comecei a trabalhar com Educação Infantil e meu bloco 3 saía alfabetizada. Aí a Diretora ria e falava assim: “ué, você não gosta de alfabetização, mas alfabetiza”. As crianças saíam lendo, saíam totalmente alfabetizadas. Aí eu falei: ah, mas é uma coisa assim, eles não tem assim obrigação de aprender, por que eu me vejo assim, não conseguir, entendeu? Porque eu acho que alfabetização eles têm que aprender, e é uma coisa mais responsável. Então eu pensava assim, nossa, se eu pegar uma turma de alfabetização e eles não conseguirem eu iria me sentir frustrada (Entrevistada E, 60 anos). 

Duvidar de si mesma ou de suas potencialidades foi recorrente na fala das entrevistadas: – “Acho que sou meio preguiçosa”. “Nem sei como passei nesse concurso”. Essa visão equivocada e pessimista de si mesma é uma construção social que passa muito pela questão da aparência e do que é lido como bonito. São as crianças brancas, por exemplo, as que são consideradas angelicais ou chamadas de “bonecas” na escola. Rememoramos a professora Giovana Xavier que publicou o livro História Social da Beleza Negra, que nos faz pensar sobre padrões estéticos e universais. A autora nos conta, entre outras coisas, sobre a indústria tóxica e perigosa de cosméticos que ofereciam às mulheres negras clarear suas peles, remover a pele preta além, é claro, dos alisadores de cabelo. 


Capa do livro publicado em 2021 pela editora Rosa dos Tempos. / Reprodução

Este estudo realizado nos aponta para a importância que é respeitar a totalidade do ser pesquisado. Durante e mesmo depois dos encontros realizados, algumas das professoras com quem conversei me mandaram mensagens agradecendo por ter lembrado delas. Por que essas profissionais são esquecidas, não são lembradas? Por que o feminismo negro ainda não transpôs certos muros da escola e alcançou essas professoras fazendo-as empoderarem-se e sentirem-se capazes, inteligentes, bonitas ou as fez compararem-se e inspirarem-se em trajetórias negras? 

A todas nós que vivenciamos as violências muitas vezes familiares de prender nossos narizes com pregadores a fim de afiná-lo, ou que tivemos que realizar nossas conquistas profissionais ouvindo das pessoas que temos que ser melhores duas vezes, para talvez alcançar o que uma pessoa branca consegue com maior facilidade. Que as professoras negras possam sempre ser ouvidas pela academia e pela sociedade, e por fim, à Neusa, que se dedicou à causa negra com muito estudo e notáveis contribuições. Que suas obras e rosto sejam legados e continuem apresentando caminhos e leituras para superarmos o racismo em todas as suas facetas: na sociedade, nas instituições e na construção de nossas subjetividades. 

 

PARA SABER MAIS 

BRAGA, Amanda Batista. História da beleza negra no Brasil: discursos, corpos e práticas. EdUFSCar, 2023. 

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 2021. 

XAVIER, Giovana. História social da beleza negra. Rosa dos Tempos, 2021. 

 

*Mestranda do PPGH/UFPB. Professora de História da Educação Básica e Mediadora Escolar. 

 

 

Edição: Heloisa de Sousa