"Meu estômago começa sinalizar coisa ruim. Uma disenteria. E agora? Peço um uber..."
Por Joel Martins Cavalcante
Meio-dia. Sol quente. Muita gente esperando o ônibus na parada em frente ao Mangabeira Shopping. Saí cedo do trabalho. A minha colega ia ter outros compromissos e não me daria carona para casa naquele dia. Olho o aplicativo e vejo que a linha que passa no Cristo, bairro onde moro, vai demorar um pouco. De repente, sinto algo dentro de mim. Meu estômago começa a sinalizar coisa ruim. Uma disenteria está a caminho, mas o meu ônibus não. E agora?
Peço um uber. O motorista manda uma mensagem dizendo que está a caminho. Eu respondendo dando minha localização exata. Às vezes, o GPS erra um pouco. No estado de expectativas que eu estava a exatidão era ouro. Mesmo assim, ele ainda para em um local diferente. Caminho, nervoso e pensando em Deus, até o carro. Uma placa tectônica se move dentro da minha barriga.
O motorista me pede desculpa por não ter visto a mensagem e meus acenos de mãos. Como qualquer pessoa educada para tratar bem a todos, eu respondo que estava tranquilo e que não tinha problema nenhum. Mentira, né? Eu estava quase me cagando e queria chegar o mais rápido possível em casa.
Pouco após a partida do carro, ele começa a dizer que motorista de aplicativo passa por cada coisa, viu. Eu, por um instante deixei de pensar no que se passava dentro de mim, na guerra interior, arregalei meus olhos, e disse, já antevendo as possíveis histórias, que ele devia ter como profissional do volante visto, ouvido e vivenciado muitas situações nos vários trajetos.
- Pois é! Agora passei por uma, nem te conto.
- Pode contar!
- Rapaz, nada contra, sabe? Cada um vive sua vida do jeito que quer. Mas tu viu a galega que saiu do carro quando tu ia entrar?
- Sim. Por quê?
- Quando fui pegá-la achei estranho que quando parei em frente ao prédio que ela esperava, um rapaz suado, botando a camisa, estava saindo também. Achei estranho aquilo. Mas cada um sabe o que faz, né?
- Pois é.
- A moça entrou no carro e, em seguida, o cara. “Olha seu Joaquim ali”, ela disse. Ele se abaixou na hora no banco de trás. Eu pensei que o boy estava amarrando o cadarço do tênis. Mas nada. “Ele já passou?”, pergunta à galega. “Já”, responde.
- Minha nossa, que coisa!
- Cara, a galega ficou vermelha, nervosa. O rapaz, que nem bonito era, desses de aparência meio doideira, sabe? ficou nervoso também.
- Sei.
- Provavelmente, esse seu Joaquim os conhecia. Ela deve ser casada. O marido devia tá trabalhando e ela metendo chifre nele com esse boy.
- Cada um sabe o que faz, né?
- Ela ainda mandou mensagem durante a viagem para uma colega do trabalho. “Mulher, vou me atrasar. Tive que fazer uns exames. Mas estou a caminho”. O boy desceu antes de virar na rua do shopping.
- O senhor deve ter cada história, né? Eu aperto a barriga, com as dores se intensificando, vejo no celular, contudo, que ainda faltam uns nove minutos para chegar em casa.
- E outro dia. Nem te conto.
- Pode contar! Minha curiosidade ameniza a dor de barriga.
- Nada contra também, cada um tem seus gostos, né? Sem preconceito algum, né?
- É. O povo deve viver feliz do jeito que quiser.
- Eu não entro em motel nem em pousada.
- Por quê?
- Não tem quem faça. Eu espero na porta, fico lá. Mas não entro. Eu vejo tanto vídeo por aí, que fico com receio, sabe?
- Entendi.
- Aí saiu um cara, acho que casado, com uma garota, uma travesti. Nada contra, né? Mas vi que era travesti. Devia ser bem algum programa.
- Talvez.
- O cara já começa errando. Pede para eu parar em um posto de gasolina, disse que o pix tava com problema e só aceitava dinheiro. Eu esperei de boas, né?
- Hum.
- Podia ser mentira, um assalto, o cara sair e não pagar. Mas ele desceu no posto. Sacou a grana e pagou a travesti. Ficou no posto mesmo.
- Ainda bem.
- A história não termina aí.
- Eita! Aconteceu mais coisas?
- Sim. A travesti ia para um bar no Geisel. Aí quando chega perto, tem uma comunidade bem perigosa, pergunta se eu podia ir até lá, já que a parada final era próxima.
- E era de noite? Eu estava empolgado com a narração que a caganeira era uma lembrança esvaindo. Olho o relógio. Três minutos para chegar em casa.
- Sim. Umas oito da noite. Eu disse, fazendo voz braba pra ela que ia, mas só por vinte reais a mais.
- É perigoso lá, né?
- Muito. Ela disse “moço, sem problemas, eu pago!”.
- Massa.
- Quando cheguei lá, tava meio longe, tinha uma poça d´água grande. Eu disse: “olhe, deu ruim pra tu, tem muita água aí, o carro não entra. Tu desce aqui e vai. Te dou dois minutos. Se tu não chegar, eu vou embora”. “Tudo bem moço”, ela disse e saiu correndo, com salto, pisando na água.
- Coitada.
- Menos de um minuto ela chegou. Me deu o dinheiro e a deixei no bar
- Graças a Deus, deu certo, né?
- A gente se arrisca muito, cara. É esse prédio aí da frente, né?
- Isso.
- Obrigado.
- Eu que agradeço. Até mais.
A corrida foi paga no cartão. No meio da viagem ele disse que só aceita corridas assim, porque é mais seguro. Eu coloco a senha no portão e corro para o 302. Mal entro e já vou tirando a roupa. A desinteria que tinha sido minimizada durante as histórias do motorista voltou com força. Quase escorre tudo na sala.
Consigo ir ao banheiro, sento-me no vaso sanitário, libero tudo aquilo que me fazia mal. Tomei banho. Me seco. Deito na cama. Enquanto isso, fico pensando na viagem feita e no motorista. E imagino que se trabalhasse como uber iria escrever tudo aquilo que ouvisse dos passageiros. É um terreno fértil para a escrita.
Crônicas para você ler num domingo preguiçoso, enfadonho, cheio de ressaca; até na praia, no açude, no rio, na mesa de bar, na rede da vó, sentado no vaso sanitário ou sobre o peito do seu amor. Você vai rir, chorar, se desesperar e, talvez, o domingo nem seja tão preguiçoso e enfadonho assim.
Joel Martins Cavalcante é professor de História da rede estadual de ensino da Paraíba, militante dos Direitos Humanos e do Movimento Brasil Popular
Edição: Polyanna Gomes