Muitas pessoas ainda desconhecem a ressignificação do 13 de maio de 1888 como Dia Nacional da Denúncia contra o Racismo, em confrontação à Lei Áurea e a mitologia criada em torno da figura da Princesa Isabel. Para nós, o 13 de maio resulta, incontestavelmente, tanto da anulação da institucionalização do sistema escravista por parte do Estado brasileiro - após quase quatro séculos de sua duração - quanto ao legado histórico de enfrentamento de pessoas negras (escravizadas e livres e de seus aliados) que viveram sob um regime de violências, posse e exploração do trabalho compulsório, assim como eram destituídas de humanidade e de liberdades (civil e coletiva).
É oportuno lembrar, mesmo que brevemente, o processo histórico para extinção da escravidão brasileira. Este foi lento e gradual, teve a participação de muitos sujeitos sociais até que na década de 1880 se instalou um consenso na sociedade da urgência do Brasil tornar-se um país “sem escravos”, de “extirpar o cancro social”, como se dizia na época. Dessa forma, houve o fortalecimento do Movimento Abolicionista, que além da resistência histórica dos/as escravizados/as, passou a contar com a agregação de outros agentes sociais de diferentes setores sociais, de cor e condição jurídica, em oposição aos conservadores das elites (social e econômica) que buscavam alongar tal regime até o século XX. Nesse processo de confrontos antiescravistas participaram trabalhadores de diversos ofícios, parlamentares, jornalistas, artistas, escritores renomados, mulheres letradas, dentre outros/as, dentre outros/as para efetivação, de modo decisivo, o enredo final para o esmagamento d0 “infame” cativeiro.
Assim, o Brasil se inseriu no contexto de abolições que ocorriam nas Américas desde o século XVIII. O marco histórico a Revolução de São Domingos (ou Revolução do Haiti, 1791), no século seguinte, o XIX, outros países findaram o tráfico e a escravização de africanos e de seus descendentes, a exemplo da República Dominicana (1822), do Chile (1823), do México (1829), do Uruguai (1842), do Equador (1851), da Colômbia (1852), da Argentina (1853), do Peru (1854), da Venezuela (1854), dos Estados Unidos (1865), de Cuba (1886) e do Brasil (1888). Diante do exposto, podemos perceber que o Brasil foi o último país do continente americano a abolir a escravatura. Ademais, o Estado brasileiro não estabeleceu a “integração” da população egressa do cativeiro na sociedade, pelo contrário, foram mantidos estigmas e exclusão social.
O Movimento Abolicionista na Paraíba do Norte foi forjado, sobretudo, pela a imprensa. Uma das primeiras manifestações se deu por intermédio dos jornais com a publicação de artigos e editoriais de crítica à escravização de crianças, mulheres e homens cativos. Outra forma se referiu a formação de associações abolicionistas que possuíam diferentes perfis e organizavam eventos artísticos para arrecadar recursos para a causa abolicionista. Desse modo, foram encenados espetáculos teatrais, apresentações musicais e saraus com o objetivo de angariar fundos para a compra das cartas de alforria para a obtenção de liberdade de pessoas escravizadas. Em Areia, no brejo paraibano, o movimento abolicionista adquiriu destaque em razão do desempenho de ativistas abolicionistas ativos que, por décadas, condenaram o escravismo. A luta deles resultou na abolição da escravidão local em 03 de maio de 1888, cerca de 10 antes da assinatura da Lei Áurea. Todavia, como dito anteriormente, muitos confrontos foram realizados pelos intelectuais antiescravistas e escravizados/as que resistiram ao cativeiro em Areia.
Mudanças expressivas de enfrentamento institucional ocorreram recentemente, com a redemocratização do Brasil (década de 1980). Tendo sido crucial as ações sociopolíticas de ativistas negros/as e seus aliados/as no decorrer da elaboração da Constituição de 1988, quando se aprovou a criminalização do racismo que, no ano seguinte, foi um parâmetro para ser sancionada a Lei l7.716/1989 (conhecida como Lei Caó). Esta definiu os crimes de discriminação de “raça” ou de “cor”, etnia, religião ou procedência nacional. Entretanto, em virtude do racismo no Brasil ser secular, estrutural e estruturante das relações sociais, recentemente, um outro marco legal foi sancionado para reafirmar as existentes e também como mais uma tentativa de obter alguma eficácia no enfrentamento das discriminações raciais.
Trata-se da Lei 14.532/23, proposta e aprovada por parlamentares (deputados e senadores) e promulgada em janeiro de 2023, pelo atual presidente da República, Lula da Silva. Nesta “nova” normativa legal, foram realizadas algumas mudanças, a saber: tipificação do crime de racismo “como a injúria racial, com a pena aumentada de um a três anos para de dois a cinco anos de reclusão. Enquanto o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo”, informação disponível no portal do Senado Brasileiro (Agência Senado, em 12/01/2023).
No entanto, a falta de cumprimento das leis que criminalizam os racismos no Brasil nos mostra que tais obstáculos estão vinculados ao fato de expressiva parte da sociedade não reconhecer esse fenômeno social e que a sua superação depende da conscientização de todos/os e a compreensão da construção de relações respeitosas no âmbito da sociedade. Além disso, compete às instituições agirem na coibição e penalização do racismo estrutural.
Como sabemos ao longo do tempo, são inúmeras as denúncias de práticas racistas no país. Para ilustrar a persistência da discriminação racial apresentamos dois episódios concretos que demonstram os limites das normativas legais que deveriam punir os crimes de racismo.
O primeiro caso é datado de dezembro de 2020. Ocorreu em João Pessoa/PB, quando dois jovens negros/as (Lucas Mendes & Ana Dindara, filha de autor/a desse texto/Solange e Antonio), foram “enquadrados/as” na Livraria Leitura (Shopping Mangabeira/João Pessoa/PB) quando observavam os produtos de uma loja que comercializa livros e itens similares à leitura, ao conhecimento. Ironia ou não, ambos estavam desejosos de adquirir o recém-lançado livro com os escritos de Lélia Gonzalez (celebrada ativista antirracista brasileira), organizado e publicado por Flávio Rios e Márcia Lima com o título “Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos” (2020). Vamos voltar ao acontecimento de racismo de 2020. Os dois jovens tiveram a coragem de denunciar nas redes sociais e numa delegacia especializada (a de repressão aos crimes homofóbicos, racismo e intolerância racial, existente). Transcorrida a ação preconceituosa e denúncia, houve uma articulação e manifestação de integrantes dos movimentos negros pessoenses em frente e no interior do shopping referido, em 05 de dezembro de 2020. Entretanto, lamentavelmente, as audiências judiciais começaram somente no ano início de 2023 e continuam inconclusas.
Vamos ao segundo exemplo que escolhemos para expor a persistência do racismo, cujo discriminado foi um parlamentar negro do Paraná. Afinal, os/as racistas não dão trégua.
Em 03 de maio de 2023, Renato Freitas, deputado estadual paranaense negro, foi interpelado pela Polícia Federal (PF) quando já estava no interior da aeronave e já havia passado pelos procedimentos de inspeção de verificação de seus pertences em equipamentos de raio X. A PF justificou a sua retirada do avião para uma revista “aleatória”.
Dias depois, em 10 de maio, o deputado Renato Freitas divulgou o seu vídeo mostrando a tal “inspeção aleatória”. As imagens “viralizaram” nas redes e mídias sociais e geraram intenso debate, incluindo uma “nova” modalidade de discriminação racial: o “racismo aleatório”.
Esse tipo de tratamento discriminatório, em seu âmago, nada tem de novo e muito menos é acionado pelo acaso ou por regras de estatística, sendo “disparado”, em geral, por uma paleta de cores presente na mentalidade racista de significativa parcela da população brasileira, ou seja, quanto mais escura a tonalidade da pele, maior a probabilidade dos mecanismos racistas serem efetivados perante o suposto manto da “alorietariedade”.
As duas “ocorrências” de discriminação racial que “enquadram”, sobretudo, pessoas negras, nos mostram que a luta antirracista é cotidiana, árdua, cansativa, afeta a saúde mental, causando transtornos mentais, traumas, pode diminuir a autoestima, mas, em geral, o povo preto, historicamente, tem mantido uma permanente diligente atuação em defesa do reconhecimento de sua humanização e de sua condição de “sujeito de direito”, isso significa compreender que temos “direito de ter direitos”, como alguns dos princípios dos Direitos Humanos que resguardam a liberdade e direitos sociais básicos.
A busca de consenso social de que a população preta/negra para se tornar “sujeito de direito” tem sido longa, sempre postergada. Contudo, após várias “batalhas” ao longo de séculos, salientamos alguns avanços sociopolíticos acerca das inúmeras demandas da população negra.
Assinalamos que somente no fim do século XX e se intensificaram nas primeiras décadas do século seguinte. Nesse sentido, houve a criação do Grupo Interministerial com a finalidade de desenvolver políticas e programas para enfrentamento do racismo. Tal iniciativa governamental resultou de embates/lutas sociais, como a Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, uma referência aos 300 anos da morte da principal liderança de Palmares, em 1995. Em 20 de novembro do referido ano, marcharam por Brasília cerca de 30 mil pessoas e, na ocasião, reivindicaram políticas públicas permanentes para a gente negra. Afinal, após mais de um século da abolição da escravatura ainda prevalecia a ausência de políticas para a maior parte dos residentes no Brasil, cujo país foi construído em “costas negras” (expressão de Manolo Florentino, historiador).
Esta iniciativa governamental resultou em alguns programas sociais com recorte racial. No início do século XXI, houve a ampliação de programas como as políticas temporárias de ações afirmativas (educação e trabalho) e políticas de Estado, com a Lei Educacional Universal, a de número 10.639/2003 com a inclusão da obrigatoriedade da História da África e da Cultura Afro-brasileira e do discussão sobre as relações étnico-raciais no Brasil. Essa normativa alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDB/1996, o que tem promovido alterações nos currículos escolares em todos os níveis de ensino, com o propósito de superação (ou minimização) do imaginário e práticas racistas criadas e transmitidas por gerações do passado e gerações do presente.
Ainda no campo educacional, destacamos as políticas temporárias de ações afirmativas no ensino universitário, com a aprovação das cotas sociais com recorte racial em instituições de ensino superior e tecnológico, o que tem resultado no aumento de estudantes negros e negras no terceiro nível de formação escolar, possibilitando oportunidades de adentrar no mundo do trabalho, em melhores condições de em relação as gerações anteriores e com potencialidade de alguma ascensão socioeconômica. Este programa governamental, ou seja, as cotas para minimizar as desigualdades sociais, se estendeu aos órgãos públicos, principalmente, os federais. Mas há, estímulos para que outros setores, incluindo o privado, criem oportunidades para aumentar a diversidade social nas empresas.
Outra conquista sociopolítica, trata-se da aprovação e promulgação do Estatuto da Igualdade Racial em 2010. O debate no Parlamento foi de quase uma década de embates e, atualmente, esse regulamento é um dos principais instrumentos para o enfrentamento aos racismos e, em época de retrocessos sociais e políticos, como o verificado entre 2019 e 2022, teve papel fundamental para a afirmação de direitos desse segmento social.
Ainda assim, não existe dúvida, do predomínio de desigualdades sociais e econômicas da população negra, posto que as violências que atingem adolescentes e jovens (genocídio) continuam a crescer; as iniquidades na saúde e na educação também atingem fortemente as pessoas negras, em relação ao mundo do trabalho, a maioria de mulheres e homens está exercendo atividades na informalidade e são cotidianas as denúncias de trabalhadores/as submetidos à situação análoga à escravidão, mantém-se também injustas relações de gênero nos diferentes âmbitos da sociedade, sendo que práticas machistas e misóginas englobam a maioria dos homens, independente de classe e raça.
Em síntese, nós, pessoas negras, continuamos nas estatísticas oficiais com os piores indicadores sociais, assinalando que, após 135 anos do fim do cativeiro, a população negra brasileira ainda não conquistou o pleno respeito e direitos sociais básicos, enfim, “conserva-se” uma cidadania republicana inconclusa.
Autora(es)
Solange Rocha, historiadora e Docente no Departamento de História e integrante do NEABI/UFPB.
Lucian Santos da Silva, Doutor em História/UFPE e Docente na Secretaria Municipal de Educação/JP/PB.
Antonio Baruty, Biólogo e Docente no Departamento de Biologia Molecular e integrante do NEABI/UFPB.
Edição: Polyanna Gomes