Por Mabel Dias*
18 de Maio é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. Diversas entidades que atuam na defesa dos direitos de crianças e adolescentes realizam atividades durante todo o mês para conscientizar a sociedade, governos e o sistema judiciário para a eliminação deste tipo de situação, ainda tão presente no Brasil.
A data foi estabelecida no ano 2000, através de um projeto de lei, em memória da menina Araceli, que foi drogada, estuprada e assassinada por jovens de classe média alta, no dia 18 de maio de 1973, na cidade de Vitória, capital do Espírito Santo. Até hoje, o crime permanece impune.
Infelizmente, esta realidade de violência contra a infância e a juventude no Brasil não se alterou. Casos de violência sexual contra meninas, por exemplo, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública têm aumentado no país. Entre os anos de 2021 e 2022, houve um crescimento de 3,7% de estupro de vulnerável. 56.098 boletins de ocorrências de estupro foram registrados só em 2021.
A mídia, que deveria ser uma aliada no enfrentamento a este tipo de crime, ainda adota uma abordagem sensacionalista e violadora dos direitos deste público.
No dia 20 de março deste ano, a TV Arapuan, afiliada à Rede TV!, no programa matinal, com características de policialesco, Tribuna Livre, exibiu uma entrevista com a mãe de uma menina que havia sido estuprada pelo padrasto. Toda a história da família foi esmiuçada pelo repórter, expondo a vida e a história familiar da criança, violando assim o que preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente nestes casos. Ao divulgar imagens, mesmo que borradas, ou detalhes de crimes de violência contra criança, inevitavelmente, a identidade da vítima acaba sendo revelada. E foi o que aconteceu - mais uma vez - pela Arapuan. Além da violação a lei que protege este público, faltou também ao programa, ética ao tratar deste assunto. Na semana seguinte, desta vez pelo programa Bom dia Paraíba, da TV Cabo Branco, afiliada à Rede Globo, também pela manhã, o repórter entrevista um casal que teve o filho adolescente abusado por seu cuidador. Querendo alertar os demais pais e mães para evitar que os filhos e filhas sejam vítimas de abuso, o casal expôs a identidade do filho, ao conceder entrevista para uma emissora de TV. Ambas as emissoras sabem que pelo Estatuto isso não pode acontecer, mas permitiram.
Um caso emblemático, que aconteceu também na Paraíba em 2017, envolveu outra menina, de apenas 11 anos, que foi violentada pelo padrasto e acabou engravidando. Por ter sofrido violência sexual, a criança teria direito ao aborto legal, mas em nenhum momento, isso foi abordado pela mídia paraibana, que deveria ter questionado o judiciário porque este direito foi negado para ela. A menina foi levada, grávida, para um abrigo, que teve o endereço revelado para TVs, como a Cabo Branco e a Tambaú, pelos órgãos que deviam protegê-la. As reportagens romantizaram a gravidez da menina, fruto de um estupro, mostrando berço, enxoval que ela havia recebido, bem como, a identidade dela, mesmo com a imagem borrada ou de costas, ela foi identificada. A menina também foi entrevistada, o que não deveria ter ocorrido, para preservar sua integridade. Diante de toda a violência que sofreu dentro de casa, ela deveria ter sido acolhida e ter seus direitos respeitados, no entanto, não foi isso que os meios de comunicação da Paraíba fizeram.
Outra problemática que resulta deste tipo de crime é a gravidez indesejada. Meninas que são abusadas, na maioria das vezes, dentro de casa por parentes, como o pai, irmão, tio ou avô, acabam engravidando e se encontram sem amparo familiar e do Estado brasileiro para poder realizar o aborto legal. Estudo da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Paraná mostra que, em média, a cada 20 minutos, uma menina é mãe no Brasil. O Norte e o Nordeste são as regiões brasileiras com o maior índice de gravidez na infância e a mortalidade materna afeta de forma mais grave e preocupante as meninas que se tornam mães.
O aborto, porém, é tabu na mídia brasileira e na paraibana. Dificilmente, as/os jornalistas fazem a ligação com a prática da exploração e do abuso sexual de crianças e adolescentes com os casos de aborto. E também não há questionamento em relação aos órgãos responsáveis em primar pelos direitos das crianças e adolescentes em lhes dar o direito das meninas estupradas de realizar o aborto legal. Ou de incentivar a educação sexual nas escolas para prevenir a violência e a exploração sexual. A maternidade deve ser vista como uma escolha e não uma obrigação, mas a visão patriarcal e religiosa parece prevalecer em relação aos direitos humanos das meninas em diversas instituições, inclusive na mídia.
Em abril de 2022, a TV Cabo Branco, noticiou o caso de uma menina de 13 anos, que, segundo a reportagem, havia abandonado o bebê recém-nascido em uma calçada. Em nenhum momento, a reportagem informou que a menina havia sido vítima de estupro, cabendo a delegada trazer esta informação. Porém, jornalistas sabem que, na maioria dos casos, quando uma menina ou adolescente engravida pode ter havido violência sexual, e casos de aborto são praticados advindos destas situações. Mas, raramente, para não dizer nunca, este tipo de problema é trazido à tona nas reportagens da mídia paraibana. Assim, perde-se a oportunidade de trazer à tona um assunto que é realidade no país e conscientizar a sociedade para o acolhimento a menina que é vitima de violência e exploração sexual e escolha abortar.
Ao final da reportagem, o repórter ainda cita que “aborto é crime no país”. Mas esqueceu de dizer que em três casos ele é permitido, é legal: em caso de risco para a mãe, em caso de estupro e quando o feto tem anencefalia. Há ainda uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) no Supremo Tribunal Federal, parada desde 2018, que propõe a descriminalização do aborto até a 12° semana de gestação. Se aprovada, permitirá que as mulheres e meninas não sejam presas por terem feito um aborto no Brasil. E quando se trata de meninas e adolescentes, o direito ao aborto é ainda mais garantido: segundo a Rede Feminista do Paraná, nestes casos, há uma violência presumida e a gravidez é de risco - o corpo não está completamente desenvolvido - e o aborto pode ser realizado pelo SUS.
O conservadorismo e dogmas religiosos, presentes na sociedade brasileira, também se refletem na imprensa, por meio do discurso de repórteres, apresentadores e da linha editorial das empresas privadas de comunicação, interditando o debate e negando uma realidade cruel no Brasil: a cultura do estupro e os abortos clandestinos. Sim, mulheres e meninas (a maioria vítima de estupro, pois não tem discernimento em relação a um ato sexual), fazem aborto no país. A maioria delas é pobre, e recorre a clínicas clandestinas para fazê-lo. Em uma reportagem publicada pela Agência Pública, o aborto inseguro é uma das principais causas de morte materna e as mulheres negras são as que mais sofrem.
O Intervozes está em caravana por diversas cidades brasileiras desde o mês de abril, lançando a pesquisa O corpo é nosso – a cobertura da mídia tradicional e religiosa sobre os direitos sexuais e reprodutivos, da coleção Vozes Silenciadas. A pesquisa foi realizada por sete mulheres e revela que os meios de comunicação brasileiros, como a Folha de S. Paulo e o Globo, por exemplo, mesmo sendo a favor da descriminalização do aborto ainda tratam o tema a partir de uma perspectiva moral.
A mídia brasileira e paraibana precisa refletir na maneira como está noticiando os casos de exploração e violência sexual contra crianças e adolescentes, pois ao invés de contribuir para o fim deste tipo de crime, está agravando o problema, provocando a violação de direitos. Que neste 18 de maio e durante todo o ano, a preservação dos direitos humanos seja incluída na linha editorial das empresas de comunicação, assim como seja revisto a produção dos programas policialescos, que vão na contramão do que prevê a legislação que regulamenta os meios no Brasil.
*Mabel Dias é jornalista, feminista, mestra em Comunicação pela UFPB, associada ao Coletivo Intervozes, observadora credenciada no Observatório Paraibano de Jornalismo e coordenadora adjunta do FINDAC.
Edição: Polyanna Gomes