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A fome e a intervenção no Haiti: necessidade de uma perspectiva estrutural do país.

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Mãe segurando bebê - Divulgação
... o cenário de fome, deve ser questionado também em suas entranhas, em sua estrutura histórica...

Por Beatriz Gomes Cornachin*

No mês da chamada abolição da escravatura no Brasil, o Haiti, o primeiro país a proclamar a primeira república de negros no mundo,  apresenta uma nova escalada de violência. Violência esta supostamente atrelada à atuação das gangues e a disputas territoriais. Ao mesmo tempo, também tem repercutido outra forma específica de violência no país, assim como a ameaça que ela traz: “110 crianças podem morrer de fome no Haiti”, como pontua relatório da UNICEF.

Contudo, observando os dados acerca da população haitiana de maneira geral, percebe-se que a questão está além das recentes manchetes. De acordo com relatório de 2022 da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), entre 2019-2021, 82,5% da população experimentava algum nível de insegurança alimentar moderada ou severa. Em outra plataforma, o relatório do IPC (Classificação Integrada de Fases da Segurança Alimentar) de março de 2023 alerta que aproximadamente 5 milhões de pessoas no país (quase metade da população, 49%), experimentam uma situação de insegurança alimentar aguda.

Na busca por causas, o UNICEF aponta para a violência proveniente dos conflitos com as gangues, especialmente na capital -Porto Príncipe- atrelada ao surto de cólera que intensifica a situação de vulnerabilidade. O cenário de violência generalizada, em particular, é descrito como um grande complicador para  a normalidade de uma rotina que permita o trabalho, a compra de alimentos e também para a dificuldade dos responsáveis pelas crianças em acessar postos de atendimento. Já o IPC, além dos conflitos das gangues, também evidencia a inflação, a baixa produção agrícola e o reduzido nível de assistência em regiões vulneráveis.

As propostas para amenizar o cenário estão atreladas à ajuda financeira e ao suporte à agricultura do país. No caso, a UNICEF coloca a necessidade imediata de 17 milhões de dólares para diagnósticos mais precisos acerca do estado de desnutrição das crianças e para adquirir insumos necessários para tratar tal situação de maneira emergencial. Ademais, pontua que 210,3 milhões de dólares são necessários para “fornecer bens e serviços vitais para crianças e populações vulneráveis no contexto de insegurança, saúde e crises”, mas que até o momento foram obtidos apenas quinze por cento do valor.

Importante mencionar que nos últimos meses tem ganhado repercussão o clamor para uma nova intervenção internacional no país, inclusive por parte da ONU.  De acordo com a Organização, a intervenção se justifica, pois a violência ultrapassa a capacidade da polícia do país. Na última segunda-feira, dia 15 de maio, o secretário geral da ONU, António Guterres, em visita à Jamaica, chamou a atenção para a fragilidade da questão haitiana e fez um apelo: "Haiti não é somente um problema de haitianos, mas da região e de todos”. Com isso, referiu-se também à importância dos países em assumir um compromisso de colaboração com uma intervenção necessária, citando as vulnerabilidades, inclusive atreladas à insegurança alimentar pela qual o país passa.

Entretanto, sabendo da importância de abordar as questões em sua raiz, precisamos evidenciar quais são as estruturas que levam o país a frequentemente ser associado à escalada de violência e de fome. Entende-se a importância das ações imediatas dado o nível de violência e a crescente desnutrição e insegurança alimentar no país. Contudo, sabe-se que não se trata da primeira vez que o país apresenta uma intensificação em tais questões. Inclusive, a resposta na forma de intervenção necessária para estabilizar o país foi colocada durante treze anos pela MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) com a liderança do Brasil e diferentes pesquisas abordam os desdobramentos de tal missão. Agora, uma nova possibilidade de intervenção é colocada no horizonte e o Brasil tem sido citado em diferentes reportagens acerca de uma possível participação, bem como o posicionamento de movimentos sociais sobre.

Além das reportagens e relatórios que dão o tom às questões mais urgentes, bem como a soluções pontuais e paliativas, outras que buscam evidenciar as raízes de algumas problemáticas podem auxiliar em uma compreensão mais ampla e compromissada com efeitos mais duradouros de estabilidade e no caso, de promoção à direitos básicos, como o Direito Humano à Alimentação, negado para grande parte da população haitiana, inclusive para as crianças. No escopo de tais reportagens, pode-se citar as elaboradas por um conjunto de jornalistas e publicadas pelo The New York Times. No caso, as reportagens publicadas em 2022 evidenciam o impacto que a indenização imposta pelos franceses ao país, após o processo revolucionário, levou o Haiti à uma “dupla dívida”: primeiro, penalizando o país por sua independência; segundo, forçando-o a contrair empréstimos para pagá-la. Tal perda poderia ser contabilizada entre 21 e 115 bilhões de dólares de impacto no desenvolvimento do país, segundo economistas consultados pelos jornalistas. Além da França e do banco Crédit Industriel et Commercial, o conjunto de reportagens também cita a interferência de Wall Street e do National City Bank, atual Citigroup, e solicitações  para que Washington realizasse intervenções no país, a fim de garantir investimentos e controle de tarifas de exportação e importação.

Além das questões evidenciadas pelo The New York Times, pesquisas acadêmicas e livros evidenciam as questões estruturais do país. A própria imposição da dívida e subsequente tentativas de aniquilar a Revolução Haitiana de 1804  forçou o país a dedicar esforços consideráveis para o plantio de cana, buscando com isso divisas para o pagamento. A questão de terras no país torna-se justificativa para expulsar camponeses e ceder áreas para exploração de estrangeiros que produziriam bens exportáveis (1822) e também, especialmente após intervenção dos Estados Unidos em 1915, para a possibilidade de exploração por transnacionais, a exemplo da Standard Fruit Company. Soma-se a isso as medidas neoliberais aplicadas especialmente a partir da década de 1980 e os impactos para os produtores locais que se viram competindo com a importação de arroz estadunidense subsidiado.

Ainda que a justificativa principal para uma possível nova intervenção internacional no país não tenha como centralidade o combate à fome, fica evidente como a temática constitui um dos fatores que evidenciam a fragilidade do país e que está relacionado também com o nível de vulnerabilidade que as pessoas experimentam. Nesse sentido, uma vez que a questão alimentar salta (uma vez mais) aos olhos ao abordar a instabilidade do país, não seria oportuno um resgate histórico, buscando tratar as questões estruturais que há tempos penalizam o país?

O momento de reaproximação e protagonismo que os países em desenvolvimento vêm estabelecendo em diferentes aspectos, o fortalecimento de laços de cooperação, inclusive contestando algumas imposições da ordem internacional estabelecida, como a questão da dolarização, não seria também um bom momento para refletir, sob outro viés, ações alternativas que juntamente com os objetivos de estabilização, almejam, ao menos no discurso, diminuir a fome e a insegurança alimentar? No caso, como uma nova intervenção no país poderia auxiliar na questão alimentar de maneira mais duradoura? Ainda que uma possível missão de estabilização esteja mais atrelada ao combate à atuação das gangues no país, especialmente na capital, sabe-se a importância do acesso aos alimentos em qualquer território quando discute-se a vulnerabilidade dos povos.

A Revolução iniciada por Mackandal, Boukman, Cécile Fatiman, levada adiante por Toussaint Louverture e concluída por Dessalines contestou a ordem da época em suas entranhas escravocratas e a estrutura de acumulação que se beneficiava da vulnerabilidade dos corpos escravizados. A atual instabilidade no país, que intensifica o cenário de fome persistente, deve ser questionada também em suas entranhas, em sua estrutura histórica, a fim de que as medidas emergenciais tenham maior efetividade, mas que sejam cada vez menos necessárias.

Beatriz Gomes Cornachin
Membro do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB (fomeri.org). Doutoranda em Economia Política Mundial pela UFABC (Universidade Federal do ABC). Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)

 

Edição: Carolina Ferreira