Que possamos dançar de mãos dadas com os povos ciganos para uma construção social diversa
Por Hiago Trindade*
“As minhas saias são asas, com elas eu posso voar até o céu”, foi essa a resposta que obtive quando questionei Marcilania Alcantara (@marcyalcantara) acerca do significado da dança cigana em sua vida. A metáfora utilizada pela artista é interessante, porque nos leva a entender a capacidade que a dança lhe propicia para “desprender-se” do plano material e levá-la a um estágio de maior elevação, não no sentido de querer distanciar-se da vida concreta e dos desafios que ela apresenta ou para criar um “mundo de ilusões”, mas sim para conseguir reestabelecer-se e retomar as lutas necessárias, sobretudo no que se refere a comunidade cigana – grupo ainda bastante estereotipado e discriminado em nossa sociedade.
A dança cigana cristaliza as influências da caminhada dos(as) ciganos(as) por distintos lugares: da Índia ao Egito, da Espanha ao Brasil e expressa a liberdade de passear pelo mundo, ultrapassando e mesmo desafiando as fronteiras que teimam em demarcar territórios e estabelecer normas econômicas e políticas para a sua ocupação. Pelas suas andanças, esses(as) pessoas se munem daquilo que de melhor o mundo pode nos oferecer: a arte, em suas mais distintas expressões.
De fato, além da dança – foco de nossa atenção no texto de hoje – o canto, a poesia e a literatura também fazem parte dos momentos de socialização dos(as) ciganos(as), inclusive daqueles(as) que hoje encontram-se inseridos(as) na comunidade Calon, em Sousa-PB, cidade que abriga a maior concentração de ciganos(as) da América Latina. Em todas essas expressões artísticas são retratadas, dialeticamente as alegrias e tristezas, as angústias e esperanças, os encantos e desencantos, além de outros sentimentos tão característicos do Ser Social.
No que se refere especificamente a dança, duas características sobressaem-se: o uso das mãos e das saias. A maneira como as dançarinas impõem as mãos, erguendo-as ao alto e movimentando-as com diversos objetos, à exemplo dos leques, dos punhais e das castanholas, pretende demarcar a luta necessária à (re)existência desses corpos, mas, de igual forma, essas mesmas mãos escrevem, em seus contornos sublimes e delicados, a memória e a história dos povos ciganos com o afeto e a solidariedade de quem festeja a possibilidade de compartilhar a vida ao lado de quem se quer bem.
Já o movimento com as saias – caracterizadas pelos tamanhos e pelas cores variadas e vibrantes – representam sobretudo a conexão com a terra e seus elementos. Além disso, manuseando-as, se constroem diversas simbologias, como por exemplo a retratação do infinito, algo revelador da potência de cada movimento traçado pelos corpos que dançam. Ora, a busca por esse infinito em meio a uma sociedade marcada por tantas desigualdades, afirma a persistência em encontrar alternativas na construção de sentidos para a vida, afinal, parafraseando Clarice Lispector, se o mundo cair, ainda nos restará a possibilidade de dançar sobre os destroços. Que possamos, então, dançar de mãos dadas com os povos ciganos, tendo em vista a construção de um mundo que respeite a diversidade.
Sobre a artista
Marcilania Alcantara (1986 – ) é cigana da etnia Calon e reside na cidade de Sousa-PB, onde exerce a função de professora. Em suas atividades docentes, obteve o reconhecimento da relevância de sua atuação a partir da conquista do prêmio Professores do Brasil (3 lugar como destaque na Paraíba). Além disso, é presidente do Dirachin Calin, grupo de dança atuante desde 2009, disseminando a arte e cultura cigana por distintos espaços. Atualmente, em paralelo às atividades de dança, desenvolve projeto de construção e socialização de contos, recuperando as memórias e tradições dos povos ciganos.
*Hiago Trindade é Doutor em Serviço Social pela UFRJ e estudante do curso de Bacharelado em Arte e Mídia pela UFCG
Edição: Polyanna Gomes