Mas, podemos falar de uma história da África na Paraíba?
Por Matheus Silveira Guimarães*
Dia 25 de maio é o dia internacional da África e, por isso, uma oportunidade para pensarmos como esse continente faz parte de nossa história
Se o/a leitor/a pudesse viajar no tempo e andar pelas ruas do centro da cidade de João Pessoa (na época, chamada de cidade da Paraíba) nos séculos XVIII ou XIX, iria ver escravizados por todos os lugares, exercendo as mais diversas atividades. Vendedores, carregadores, na limpeza das ruas, sapateiros, alfaiates etc. Muitos circulavam pela cidade tentando ganhar a vida, sendo chamados de ganhadores. Para isso, tinham que garantir um pagamento específico para seus senhores - muitos deles não eram proprietários de terra e buscavam essa forma de obter rendimentos com seus escravos. Outros, poderiam estar na cidade cumprindo ordem de seus senhores, mas, na maioria das vezes, trabalhavam na produção do açúcar ou algodão. Não há dúvidas de que nosso/a leitor/a encontraria também vários africanos e africanas, escravizados ou livres.
Até a década de 1850, milhões de africanos foram aprisionados e submetidos a inúmeras violências no Brasil. Após serem presos, eram carregados em navios, amontoados e colocados em péssimas condições de higiene. Uma viagem pelo oceano Atlântico entre a África e o Brasil poderia durar entre quinze a sessenta dias. Muitos morriam no caminho. Aqueles que sobreviviam, ao desembarcarem, eram vendidos a preços altos. Esse comércio, bastante lucrativo, existiu por séculos e deu sustentação à prática da escravidão. Ao mesmo tempo, essas pessoas trouxeram consigo suas experiências e, no cotidiano, construíram diversas formas de luta pela liberdade. Assim, não podemos pensar o nosso país sem nos voltarmos para a África e para os africanos e seus descendentes. Mas, podemos falar de uma história da África na Paraíba?
A Paraíba não estava isolada do tráfico de escravizados e, por isso, também foi palco de desembarque e vivência de vários africanos. Não sabemos ao certo quantas pessoas vindas da África chegaram no território da Paraíba, porém, para se ter uma ideia, entre 1714 e 1754, uma média de 250 foram desembarcadas aqui anualmente, além daquelas que vieram de Pernambuco ou da Bahia. Ou seja, esse tráfico conectou o ponto mais oriental da América ao outro lado do Atlântico.
Dentre as pessoas desembarcadas por aqui, sabemos a história de Francisco Gangá e Cosma Correia, que eram casados e viviam na cidade da Paraíba na década de 1830. Nascidos na África, vieram como escravizados e conseguiram sua liberdade anos depois. Apesar de termos poucas informações sobre o casal, sua história nos ajuda a compreender a presença africana na Paraíba, tema por muito tempo negligenciado.
A chegada de Francisco Gangá e Cosma Correia pode ter ocorrido no início do século XIX, um período em que a Paraíba tentava se recuperar economicamente após décadas de anexação a Pernambuco. Naquela época, o algodão despontava como importante atividade econômica ao lado do açúcar. Foi para trabalhar nessas atividades que, na Paraíba, muitos africanos foram escravizados. Essas pessoas possuíam suas crenças, experiências de vida e práticas culturais na África e, apesar de todas as tentativas de desumanização a qual eram submetidas, tentaram reconstruir suas vidas e buscar formas de conseguir a liberdade, circulando e experimentando a cidade.
Após serem aprisionadas, elas eram batizadas e muitas deveriam adotar um nome cristão/português. Francisco foi o novo nome assumido pelo nosso personagem. Porém, ele conseguiu evidenciar sua ascendência africana ao assinar e se denominar “Gangá”. Nganga era um termo utilizado por sacerdotes na África Central, nas regiões conhecidas como Congo-Angola e de onde veio a maior parte dos africanos escravizados para o Brasil e, especificamente, Paraíba.
A África possui um grande território e, apesar de alguns traços em comum, não pode ser vista como uma coisa só, mas como um continente diverso em vários aspectos: econômicos, culturais, políticos e ecológicos. Usualmente, são classificadas cinco grandes regiões para o continente: as partes meridional, ocidental, central, oriental e setentrional.
As regiões da África Ocidental (chamada pelos portugueses como Costa da Mina) e da África Central (Congo/ Angola) são fundamentais para pensarmos a história do Brasil. Dessas duas regiões vieram mais de três milhões de pessoas em cerca de 300 anos de tráfico de escravizados. Francisco Gangá veio de Angola e aqui na Paraíba encontrou muitos outros dessa mesma região, tornando-se importante no apoio aos que chegavam, por já estar há mais tempo no Brasil, como nos casos de Margarida e Josefa, mulheres vindas também de Angola como escravizadas, e que ele apadrinhou. Assim, Francisco desempenhava certa liderança e era uma referência entre os africanos recém chegados na Paraíba.
Não era apenas com pessoas vindas de Angola que Francisco Gangá se relacionava. Em fevereiro de 1844, ele e sua esposa, Cosma Correia, fizeram um testamento informando como gostariam de distribuir seus pertences após morrerem. Um de seus desejos foi dedicar esmolas à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, da qual faziam parte. Essa Irmandade foi criada ainda no século XVII por africanos e se transformou um importante lugar de solidariedade entre eles. A Igreja foi erguida onde hoje está o famoso Ponto de Cem Réis, no centro da cidade.
Criada com o objetivo de cuidar do sepultamento dos irmãos, a Irmandade do Rosário dos Pretos, na cidade da Paraíba, era aberta para todas as pessoas, desde que pagassem os valores estabelecidos para a manutenção da Irmandade. Apesar disso, era liderada por pessoas pretas, ou seja, africanas e suas descendentes (chamadas à época de crioulas). Os rituais de sepultamento eram relevantes naquela sociedade. As irmandades, assim, garantiam uma “boa morte” aos seus irmãos, construindo, em vida, relações de solidariedade entre eles.
Foi nessa irmandade que Francisco Gangá e Cosma Correia devem ter conhecido e convivido com Quitéria Pereira de Sousa. Alguns anos antes de Francisco e Cosma, em 1842, Quitéria registrou seu testamento. Afirmava que era nascida na Costa da Mina e veio para o Brasil ainda criança, não lembrando muito bem sobre como era sua vida na África. Após vários anos como escravizada, conseguiu sua liberdade, casou-se e, com o testamento, registrava o desejo de deixar seus poucos bens para uma afilhada. Quitéria também deixou esmolas para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, onde possivelmente foi enterrada.
Além de organizar os rituais de sepultamento, as irmandades exerciam outra função importante. Todo mês de outubro, seus irmãos organizavam uma festa em homenagem à Nossa Senhora, desfilando pelas ruas da cidade ao som dos chamados “batuques”. No início do século XX, essas festas ainda aconteciam, como registrado por Ademar Vidal e Mário de Andrade. Na primeira semana do mês, era a festa em homenagem à padroeira. Na semana seguinte, ocorria a coroação dos reis e rainhas do Congo, que desfilavam durante a festa, recolhendo esmolas e demonstrando sua liderança. Mesmo após a abolição, em 1888, essas pessoas africanas circulavam pela cidade, celebrando, com cantos e batuques, memórias da África. Vale lembrar que as festas de Coroação de Reis e Rainhas do Congo acontecem até os dias de hoje no interior do Estado, a exemplo da cidade de Pombal, bem como a presença de diversas irmandades do Rosário, evidência da presença africana em toda a Paraíba.
No mesmo período em que Francisco, Cosma e Quitéria registraram seus testamentos, o tráfico de escravizados vindos da África já havia se tornado ilegal (desde 1831). Ainda assim, os senhores, apostando alto nesse comércio e, desrespeitando tratados internacionais e leis criadas pelo congresso brasileiro, continuaram comprando escravizados. Isso levou a algumas mudanças na forma de escravização. Aumentaram o número de crianças vindas da África, mudaram os locais de embarque e desembarque e tornou-se mais comum o comércio entre províncias (os atuais Estados) do Brasil.
Moçambique, que fica no lado oriental da África, tornou-se um ponto de embarque mais utilizado pelos traficantes. De lá, vieram centenas de milhares de escravizados para o Brasil. Um deles foi Antônio, batizado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, na cidade da Paraíba, em 1859. Teria Antônio se tornado membro dessa irmandade, assim como Francisco, Cosma e Quitéria?
Em 1872, no primeiro censo realizado no Brasil, foram registrados 373 africanos na Paraíba, sendo eles livres ou escravizados, demonstrando essa importante presença mesmo após décadas do fim do tráfico. Essa presença não é apenas numérica. Como já mencionado, aspectos da cultura afro permanecem vivos até hoje em toda a Paraíba, seja nas práticas religiosas ou festas populares, seja nas diversas comunidades quilombolas espalhadas pelo estado ou até mesmo em nomes de cidades, como a cidade do Congo.
Uma dessas expressões que fazem referência direta à África é a tribo indígena de carnaval Africanos. Fundada no início do século XX, existe até hoje e desfila no carnaval tradição da cidade de João Pessoa. Essa tribo carnavalesca também foi registrada na expedição feita por Mário de Andrade na década de 1930.
Como lembrado pela coleção de livros didáticos, “A África está em nós” e continua viva no nosso cotidiano. As histórias aqui contadas demonstram a influência que africanos e africanas de diversas regiões tiveram na história da Paraíba. Durante muito tempo, essas experiências de vida foram negadas, apagadas ou omitidas. Dia 25 de maio é o dia internacional da África e, por isso, uma oportunidade para pensarmos como esse continente faz parte de nossa história.
PARA SABER MAIS
FLORES, Elio Chaves (coordenação). A África está em nós: história e cultura afro-brasileira: africanidades paraibanas. João Pessoa-PB: Editora Grafset, 2011.
GUIMARÃES, Matheus Silveira. Diáspora africana na Paraíba do Norte: trabalho, tráfico e sociabilidade na primeira metade do século XIX. João Pessoa: Editora do CCTA, 2018.
ROCHA, Solange Pereira da. Gente negra na Paraíba Oitocentista: população, família e parentesco espiritual. São Paulo, Editora UNESP, 2009.
* Doutor em História pela UFPE. Professor da Rede Municipal de João Pessoa-PB.
Edição: Heloisa de Sousa