Um senhor, certamente com mais de 70 anos, deu boa tarde aos demais passageiros, e sentou a cantar
Po Joel Martins Cavalcante
Eu tinha ido para um encontro na orla de Tambaú em fim de manhã de janeiro. Deu certo. Ficamos num quiosque. Tomamos umas cervejas e trocamos uns afetos até boa parte da tarde calorosa. Mas nada dura para sempre, né? Assim que vi a hora, tivemos que nos despedir e cada um pegar seu rumo. Fui esperar o ônibus na primeira parada após o largo de Tambaú, na Epitácio.
Precisava chegar na Integração e depois na rodoviária comprar uma passagem e ir para Alagoinha. Peguei um livro e comecei a ler enquanto esperava o coletivo e continuei a leitura mesmo após ter entrado no transporte.
Quando o ônibus chega na parada da Lagoa, como sempre, muita gente desce e muita gente sobe indo em direção ao terminal de integração do Varadouro (pena que o terminal foi desconfigurado nos últimos tempos). Entra um senhor, certamente com mais de 70 anos, deu boa tarde aos demais passageiros, sentou e começou a cantar.
De repente paro a leitura assim que sua voz grave começa a entoar “A volta do Boêmio” de Nelson Gonçalves. Guardo o livro e fico, mentalmente, cantando “Boêmia, aqui me tens de regresso, e suplicante te peço a minha nova inscrição”. Que beleza! Quando ele ia iniciar o trecho seguinte, um outro senhor, sentado um pouco atrás de mim, canta “voltei pra rever os amigos que um dia eu deixei a chorar de alegria, me acompanha o meu violão”.
Parecia algo combinado. Os dois vão cantando enquanto o ônibus segue seu destino, passando por baixo do viaduto e entrando no Varadouro. E canto também, como falei acima, mentalmente. Não queria atrapalhar aquele dueto belíssimo que rompia com o ordinário das viagens cotidianas no transporte coletivo de João Pessoa.
Quando chegamos no terminal de integração, enquanto todos começam a descer do ônibus, eu vou me demorando propositadamente para falar com o senhor que iniciou a canção do velho Nelson. Parece que ele adivinhou meu intento e me diz: “Ontem eu tava cantando no ônibus e uma mulher evangélica disse que eu estava endemoniado”. Minha resposta: “o demônio estava nela por não reconhecer a beleza poética e o dom divino em canções como ‘a volta do boêmio’”. Ele ri e sigo meu destino.
Chego a poucos minutos de perder o ônibus. Comprei minha passagem às pressas, pego o livro que estava lendo anteriormente, e viajo feliz para a minha terra natal. Chegando, fui logo acionando a canção de Nelson no youtube, coloquei em um copo americano licor de jenipapo que minha irmã tinha feito, e vou curtir a boemia enquanto a macaxeira da janta que mãe fazia cozinhava no fogo.
Edição: Cida Alves