...o relatório enfatiza a importância de estratégias alternativas que fortaleçam a participação...
Por Igor Palma Barbosa*
O Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (IPES-Food) é um painel independentecom a missão de promover a transição para sistemas alimentares sustentáveis em todo o mundo. Contando com 23 especialistas de 16 países diferentes, o IPES-Food tem se empenhado desde 2015 no debate sobre reformas e processos políticos que empoderam a sociedade civil de forma multidisciplinar. Composto por cientistas ambientalistas, economistas do desenvolvimento, nutricionistas, agrônomos, sociólogos, e outros profissionais experientes da sociedade civil e movimentos sociais, o painel adota uma abordagem sistêmica que reconhece a natureza complexa e interconectada dos desafios nos sistemas alimentares e as relações de poder que moldam as tomadas de decisão.
Em seu último relatório, intitulado "Who's Tippingthe Scales? The growing influence of corporations on the governance of food systems, and how to counter it" ("Quem está desequilibrando as escalas? A crescente influência das corporações na governança dos sistemas alimentares, e como combatê-la") apresenta-se um convite ao debate crítico sobre a influência e participação do setor corporativo nos sistemas alimentares. Fornece ainda uma visão geral e histórica do impacto das corporações na governança alimentar, faz um balanço das novas maneiras pelas quais os processos de tomada de decisão estão sendo capturados e identifica possíveis caminhos para uma governança mais democrática e com responsividade corporativa.
O problema se acentua quando os interesses das grandes corporações do setor alimentar são confundidos com o interesse geral dos Estados e atores da sociedade civil que participam dos arranjos de produção e consumo de alimentos. Um exemplo notório desta prática foi o resultado da Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU de 2021, na qual ficou evidente a capacidade de empresas agroalimentares multinacionais influenciarem na tomada de decisões e dominar os processos de negociação aparentemente inclusivos dos “multistakeholders”. Por meio do multistakeholderism, essas entidades são habilitadas a moldar discursos, narrativas, programas e políticas.Iniciativas multissetoriais, relativas à governança de sistemas alimentares acabam por confundir as linhas entre os papéis e responsabilidades dos detentores de direitos, portadores de deveres e aqueles que atuam em nome de agendas corporativas.
A literatura especializada aponta que a captura desse setor aos canais de governança alimentar funciona a partir de mecanismos mais visíveis e menos visíveis. Entre os mais visíveis encontra-se a maior participação de empresas nos espaços e processos de governança, colocando suas reivindicações e atuando como atores legítimos no processo de tomada de decisões. Como exemplos dessas práticas podem ser colocadas parcerias público-privadas, como a “Global Alliance for ImprovedNutrition” (Aliança Global para Melhor Nutrição) e a Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU de 2021 como representante dos modelos de negociação do multistakeholderism. Entre os mecanismos menos visíveis, e mais comuns, são elencadas as estratégias de lobby nos bastidores das negociações, as doações públicas e institucionais, o exercício do poder de mercado, a interferência nas regras de investimento e comércio e o “investimento diretivo” em pesquisa e inovação.
Esta crescente influência, no entanto, levanta preocupações importantes para a preservação do bem público. Em primeiro lugar, pode minar os princípios de inclusão, justiça e transparência nos processos de governança. Segundo, pode enfraquecer o impacto e a eficiência dos resultados nos arranjos governativos. Por último, pode resultar em falta de responsividade corporativa, especialmente para aqueles que são mais afetados pelas ações de poderosas corporações e seus impactos econômicos, sociais, políticos e ambientais.
O grau de autonomia e as dificuldades de regulamentar a ação das corporações agroalimentares em muito se explica também por sua capacidade em interferir nos aspectos estruturais dos sistemas alimentares globais. Clapp e Fuchs (2009) apontam que, já na década de 1970, o fortalecimento do setor está amparado pela expansão do comércio agrícola que vinha em uma crescente com o advento das técnicas industriais de produção. Estas corporações se diversificaram em múltiplas facetas do setor de alimentos atuando em áreas como o comércio de commodities,processamento e varejo de alimentos e produção de sementes e produtos químicos agrícolas. Com a expansão das revoluções verdes, produtos tecnológicos foram fornecidos sob o intermédio destes atores. Além disso, o processo de recrudescimento das forças de mercado e questionamento do intervencionismo estatal como boa prática da agenda neoliberal permitiu o crescimento da influência desse setor no debate público. A ampliação de suas operações nas cadeias de produção agroalimentares teve uma crescente desde então e a legitimidade de seu papel na integração do sistema alimentar passou a ser inquestionável.
A tentativa de regulamentar a ação desses atores foi objeto de negociação no âmbito da ONU na mesma década. No entanto, o fracasso em aprovar um código de conduta para corporações transnacionais se justificou pelo conflito de interesses que países ricos alegaram com a necessidade de também se fortalecer o direito dos investidores. Dessa forma, a interferência via financiamento e participação em organismos oficiais de governança nacional e internacional permitiu que o setor corporativo continuasse a interferir nos bastidores das negociações e criasse “ambientes jurídicos” permissivos aos seus interesses. O apelo científico também serviu como outro braço da estratégia para se legitimar e construir consensos no debate público. O financiamento a estudos diretivos de comunidades epistêmicas por empresas como Nestlé e Unilever permitiu que lastros de sustentabilidade pudessem ser agregados aos seus produtos e por consequência ampliar sua voz nos debates sobre questões alimentares.
No que confere aos resultados, a influência corporativa afeta a qualidade e a eficácia das iniciativas de governança. Os tipos de iniciativas que surgem a partir do protagonismo das empresas, como esquemas de certificação liderados pela indústria, geralmente são fracos e ineficazes para lidar com os problemas que procuram resolver. Além disso, a limitação resultante da restrição dos processos de tomada de decisão por esses mecanismos impede que outras rotas sejam calculadas para solucionar as questões dos sistemas alimentares. O privilégio sobre estratégias mercantis exclui discussões como a necessidade de redirecionamento de gastos públicos para instituições públicas e comunitárias e a redistribuição de riqueza.Dessa forma, estratégias para que esses obstáculos sejam superados devem passar prioritariamente pelo fortalecimento dos Estados e atores da sociedade civil nos canais de governança.
Ao final do relatório, uma série de recomendações são elencadas para contrabalancear a crescente influência corporativa nos sistemas alimentares. Em primeiro lugar, destaca a necessidade de regulamentação e promoção de uma governança mais forte. Isso inclui a implementação de políticas que limitem o poder das corporações, promovendo a diversificação agrícola, fortalecendo a agricultura familiar e incentivando a produção de alimentos sustentáveis. Também são necessárias medidas para aumentar a transparência e a responsabilização das corporações, exigindo a divulgação de informações sobre suas práticas e impactos.
Além disso, o relatório enfatiza a importância de estratégias alternativas que fortaleçam a participação e o poder das comunidades locais e dos consumidores. Isso inclui a promoção de sistemas alimentares baseados em abordagens agroecológicas, que valorizem a diversidade de culturas e práticas sustentáveis. Também são destacadas ações para aumentar a conscientização e a educação dos consumidores sobre a influência das corporações e os impactos de suas escolhas alimentares.
O desafio, portanto, está lançado. Abordar essa questão exigirá esforços conjuntos de governos, sociedade civil, setor privado e consumidores conscientes. Somente através de uma ação coletiva e comprometida será possível garantir que os sistemas alimentares sejam governados de forma equitativa e sustentável, para o benefício de todas as pessoas e do planeta como um todo.
*Membro do grupo de pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI) e da Rede de Estudos Agroalimentares Internacionais (REDAGRI). Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais e Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba(UFPB). Bolsista FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia).
Referências
IPES-Food, 2023. Who’s Tipping the Scales? The growing influence of corporations on the governance of food systems, and how to counter it.
CLAPP, Jennifer; FUCHS, Doris. “Corporate Power and Global Agrifood Governance: Lessons Learned”. In. CLAPP, Jennifer; FUCHS, Doris (orgs.). Corporate Power in Global Agrifood Governance. London: The MIT Press, 2009.
Edição: Maria Franco