todos estavam na mira da Inquisição.
Por Fabiana Schleumer*
Na década de 1980, nos livros didáticos de História, predominava a explicação da Inquisição Portuguesa como uma instituição que perseguia quase exclusivamente judeus e cristãos-novos. Africanos, escravos e forros, não faziam parte desse capítulo da História: estavam circunscritos às seções que se dedicavam ao tráfico negreiro e à escravidão no Brasil.
Com a promulgação da Lei 10.639/2003, a qual instituiu o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira, a produção de materiais didáticos e paradidáticos cresceu de forma significativa. Entretanto, ainda são tímidas as análises sobre as sociedades africanas, suas formas de expressão religiosa e suas interfaces com a religiosidade europeia.
Estudos recentes desenvolvidos por pesquisadores brasileiros, americanos, africanos e europeus dedicam-se, cada vez mais, a descortinar esse universo, resgatando histórias, saberes e tradições africanas no bojo das sociedades interioranas. Neste texto, ausculta-se o interior de Angola, Ambaca, com suas tensões e contradições no que tange às religiosidades tradicionais. Atenta-se para sua interação com o cristianismo e o papel desempenhado pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa.
Um conjunto de documentos localizados em arquivos e bibliotecas portuguesas aponta que em data incerta, na Freguesia da Sé, na cidade de São Paulo de Luanda, nascia Catarina Juliana, filha de Paulo Eugênio – preto, alfaiate, escravo do padre João Lemos – e de Juliana Salvador, escrava de Josefa Florim Correa. A pequena foi batizada na freguesia em que nasceu e teve como padrinhos os pretos livres, José e Barbara Rodrigues. Ainda na cidade de São Paulo de Luanda, desta vez, na Igreja do Rosário, Catarina recebeu o sacramento da crisma. Foi sua madrinha, Felipa de Lima, ao que tudo indica, uma preta livre ou liberta.1
A vida de Catarina Juliana, mulher preta, dotada de forte personalidade, adquiriu contorno diferenciado quando seus caminhos se cruzaram com os de João Pereira da Cunha, capitão-mor do Presídio de Ambaca, Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção e cavaleiro professo da Ordem de Cristo.
Filho de Francisco Pereira, familiar do Santo Ofício e de Mariana Mendes Ramila, a naturalidade e a data de nascimento de João Pereira da Cunha são incertas. As fontes indicam que ele nasceu na Freguesia de São Martinho de Leitoins, termo de Guimarães, Arcebispado de Braga, ao mesmo tempo em que há indícios de que ele seria natural da Freguesia de Santiago da Cruz, termo de Barcelos.
Catarina Juliana e o capitão-mor se conheceram em Luanda. Ele a adquiriu e juntos mudaram-se para o Presídio de Ambaca, no interior de Angola. Com o passar do tempo, as relações entre ambos extrapolaram as convenções entre senhores e escravos. Catarina tornou-se concubina de João Pereira da Cunha e mãe de Maria, filha do capitão-mor, falecida aos oito meses de vida.
Por conta do vínculo amoroso entre os dois, o capitão-mor concedeu a Catarina Juliana a carta de alforria. Ela tornou-se uma preta forra, “senhora” de escravos e detentora de cordões de ouro, pares de brinco, dinheiro em moeda corrente e ouro.
Em Ambaca, a passagem do capitão-mor João Pereira da Cunha não foi das melhores. Ele era considerado um homem rude e de poucas palavras, que ocupava um cargo de destaque. Era uma das mais altas patentes da localidade. A posição de capitão-mor era um cargo cobiçado não somente pelos portugueses, mas também pelos africanos que habitavam a região.
Em função disso, em 4 de abril de 1746, João Pereira foi denunciado ao Tribunal da Inquisição por prática de idolatria. Transcorridos quatro anos, ele prestou depoimento perante a mesa da Inquisição. Declarou que possuía quatro casas de morada, sendo três residências térreas e um sobrado, o valor de 7.500 cruzados em móveis e louças, peças em prata e ouro, açúcar e barril de arroz. Disse que possuía “dez mil e tantos cruzados” na mão de seu procurador e aproximadamente 300 réis sob a responsabilidade de Catarina Juliana. Possuía, ainda, dois hábitos de Cristo, um de ouro, outro de diamante e, aproximadamente, sessenta escravos, entre homens e mulheres.
Em 14 de novembro de 1750, cumpridas as prerrogativas legais, ou seja, a inquirição do acusado e a escuta das testemunhas, em sua maioria, eclesiásticos e residentes em Ambaca, o acusado foi preso.
Após quatro meses, a vida do capitão-mor chegou ao fim. Sua morte foi considerada natural por um conjunto diversificado de testemunhas que o acompanharam nos momentos finais. Após o seu passamento, foi-lhe dada a absolvição, pois conclui-se que os sentimentos de cobiça e discórdia que predominavam em Ambaca foram os responsáveis pela improcedente denúncia. Sendo assim, aos seus restos mortais, deu-se sepultura eclesiástica. Os bens sequestrados foram entregues a seus herdeiros.
Acusação similar, porém com consequências diversas, recaiu sobre Catarina Juliana. Em 1749, a preta forra foi denunciada ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa por superstição e feitiçaria. Foi presa em Angola e, posteriormente, transferida para Lisboa. No ano de 1757, Catarina Juliana se apresentou ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa para averiguação. Na ocasião, a ré respondeu a cerca de vinte perguntas sobre sua fé e práticas católicas. O objetivo da mesa era verificar se Catarina Juliana adorava o demônio e participava de cerimônias de culto a animais, bem como se dedicava a feitiços e malefícios. Entre outras coisas, desejavam saber se a ré cantava, bailava e batia palmas em cerimônias na casa de pessoas doentes com a finalidade de que recuperassem a saúde.
Os membros da mesa acreditavam que Catarina Juliana cedia a cabeça ao ”demônio”, para que ele pudesse responder às perguntas, pois a ré era “tida” e “tratada” como feiticeira. Após exaustivo depoimento, foi considerada culpada. Como ela se declarou cristã, batizada e crismada, foi considerada herege, ou seja, apóstata da fé católica.
Passados seis anos, Catarina Juliana faleceu nos cárceres da Inquisição. Ela teve “estupor”, um ano antes de sua morte. O ocorrido foi objeto de investigação. Nove testemunhas foram convocadas para certificar se a morte foi natural ou violenta. Entre as testemunhas estavam os médicos, os guardas, o alcaide e as mulheres que a auxiliaram nos seus últimos momentos.
Ao que tudo indica, Catarina Juliana era “ganga”, ou seja, liderança religiosa, que participava ativamente das cerimônias de Calundu, as quais tinham por objetivo a cura e a recuperação da saúde perdida. Em tempos em que predominavam os interesses da expansão e da propagação do cristianismo, os calundus foram compreendidos como fatores de impedimento ao fortalecimento da fé cristã. Do mesmo modo, esses rituais foram um entrave à utilização de práticas exorcistas como instrumentos de cura e libertação do corpo e do espírito.
Entre outras coisas, as histórias de Catarina Juliana e de João Pereira da Cunha evidenciam que, resguardadas as devidas particularidades, cativos, livres e forros, cristãos- novos, homens, mulheres e crianças, todos, estavam na mira da Inquisição. Naquele contexto, a condição socioeconômica, assim como os papéis de gênero e o estatuto jurídico, constituíram elementos determinantes na escrita da história da Inquisição em Angola.
Passados vinte anos da promulgação da Lei 10.639/2003, compete-nos articular esforços para que essas e outras histórias protagonizadas por africanos livres, cativos e forros se façam presentes nos materiais didáticos e paradidáticos. Certamente, dentre outros, nosso empenho contribuirá para a compreensão da História de Angola, além do comércio legal de escravos e das práticas do cativeiro.
* Doutora em História Social/USP, docente do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/Unifesp).
PARA SABER MAIS
FERREIRA, Roquinaldo. Cross Cultural Exchange in the Atlantic World. New York: Cambridge University Press, 2013.
KANANOJA, Kalle. Healers, Idolaters, and Good Christians. A case study of Creolization and Popular Religion in Mid-Eighteenth Century Angola. The International Journal of African Historical Studies 43(3): 443-465, 2015.
SCHLEUMER, Fabiana. Mulheres e Inquisição em Angola: a História de Catarina Juliana. Anais de História de além-mar. Lisboa: CHAM, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Universidade de Ações, vol. XXI, 2020.
Edição: Heloisa de Sousa