Mamanguape é terra cravejada de mulheres e homens negros que buscam ampliar suas vozes e identidades
Por Aldo Silva de Mendonça*
Alguns anos atrás, antes mesmo da pandemia, num final de tarde, conversava de forma descontraída com uma colega professora sobre a história e a sociologia da cidade de Mamanguape (PB). Em um determinado momento do diálogo, fui questionado de forma arguta e ao mesmo tempo despretensiosa, “onde estavam os negros e negras do lugar?”
Por alguns instantes, percebi que havia no seu olhar uma expressão que conjugava inquietude e serenidade. Na condição de mulher negra, intelectual e recém-chegada tinha interesse em compreender as lógicas internas “raciais”. A mesma tinha conhecimento que a cidade foi um importante centro escravista, dada a significativa capilaridade dos seus engenhos que marcaram profundamente sua paisagem natural e humana. De fato, Mamanguape concentrou em meados do século XIX, um dos maiores núcleos populacionais de pessoas escravizadas da então província da Paraíba.
É claro que a professora não se referia a existência física em si de negros e negras, mas prescrutava sobre a presença das manifestações culturais, das expressões artísticas, das mobilizações políticas e do protagonismo desse grupo na dinâmica social atual. Como resposta à sua indagação, confesso que naquele momento tergiversei. Mas, aquela dinâmica dialógica e informal deixou em mim uma questão em aberto, não que antes nunca havia refletido sobre tal, mas naquela tarde de verão, as circunstâncias foram outras, a ponto de me inspirarem estas linhas.
Tudo isso me fez repensar sobre o processo de invisibilidade e de silenciamento da memória negra nas produções artísticas e literárias sobre a cidade ao longo dos tempos, há de fato uma indevida, porém intencional lacuna nos processos históricos que omitiu agentes históricos essenciais para compreensão da organização societária presente. Mas também, permitiu-me um olhar mais crítico sobre os processos de emergência da cultura negra local.
Sobre essa questão, é mais claro ainda, que vozes negras do lugar vêm denunciando e rompendo com as amarras impostas por um sistema que nega de forma capciosa as sequelas de mais de trezentos anos de escravização. As consequências estão presentes de forma aberta e velada, quando pensamos sobre o racismo estrutural. Quando valores estéticos são conscientemente impostos e inconscientemente incorporados no nosso imaginário, nas nossas práticas cotidianas, nas nossas formas de ver o mundo, nas nossas crenças.
Particularmente, na condição de professor há dezoito anos da educação básica, vivenciei experiências que nos diz muito sobre os impactos sociais da cor do corpo. Trago aqui, uma, de tantas outras situações que claramente marca a condição de ser negro. Certa vez, dentro de uma escola, estava auxiliando uma jovem estudante a preencher um questionário socioeconômico, desses ligados a avalições externas, e no quesito cor, a mesma se declarou branca, aquilo me deixou reflexivo, pois a jovem era claramente negra, de forma singela eu a perguntei se tinha entendido a pergunta, a resposta foi enfática “claro professor, tá me chamando de que? Eu me considero branca.”
Felizmente, casos como estes se tornam cada vez mais isolados, pois há uma crescente mobilização de discursos e práticas de valorização da identidade negra na cidade. Nesse sentido, é comum vermos jovens negras percorrendo as principais ruas assumindo seus cachos, sua negritude de variadas formas; não diferentes nos difundidos grupos de capoeira, através dos quais jovens negros batem no peito e dizem “sou negro com muito orgulho”, eventos corriqueiros como esses não eram vistos na cidade.
Ainda seguindo o mesmo raciocínio, no ano de 2022, em evento alusivo ao Dia Nacional da Consciência Negra, organizado pela secretaria municipal de Cultura, testemunhei a fala do jovem Daniel Gomes, que na oportunidade representava outros jovens da cidade, o mesmo se expressava de maneira enfática e orgulhosa sobre sua história de vida, que permeava uma significativa identificação e valorização com a umbanda. Aquela manifestação pública de um adolescente de aproximadamente dezesseis anos de idade, ligado a uma religião de matriz afro, representava simbolicamente uma fissura profunda num modelo de sociedade patriarcal-católica-branca. Parece-me sintomático também, como emergente movimento de vanguarda contra-hegemônico, a pesquisa realizada pela professora Eliane Cruz sobre a Irmandade de Nª Sª do Rosário dos Pretos de Mamanguape (2017), enfatizando o papel social e cultural dessa entidade, explorando micros eventos sobre a história de personagens negros.
Seguindo nessa esteira, não posso deixar de registrar, a recente produção da biografia do musicista negro e mamanguapense, Luz Severino dos Santos, popularmente conhecido como Macário, de autoria da professora Ana Cristina, transformado em cordel pela professora Francijane Lima, intitulado “Macário é verso de Mamanguape” (2023). Tal produção, das referências que consegui levantar, posso afirmar de se tratar da primeira produção literária do gênero, voltada exclusivamente para um personagem negro, a fim de publicizar sua vida e obra.
Dessa forma, para concluir, se a professora Luz, perguntasse-me mais uma vez, “onde estão os negros e negras desse lugar?” Eu responderia, não na condição de porta-voz ou representante, mas de observador dos fenômenos sociais, estão em todos os lugares, este território é cravejado da história e da presença de mulheres e homens negros, que buscam ampliar suas vozes e sua identidade cotidianamente num constante processo de luta contra o preconceito e racismo estrutural.
*Professor de História da rede estadual e municipal da Paraíba. É membro do grupo de pesquisa LAPA (Laboratório de Antropologia, Política e Comunicação) ligado à UFPB; é autor do livro “Luta e Suor em Mamanguape: o caso do engenho Itapecerica”. Foi secretário adjunto de Educação e Cultura do município de Mamanguape-PB
Edição: Polyanna Gomes