Paraíba

Coluna

O poder feminino no culto aos Orixás e a expressão das Iya Mi Osoronga

Cada ser vivo é a expressão da ancestralidade das Iya Mi Osoronga. - Sergio Roberto Silveira
O primeiro conceito das Iya Mi Osoronga pode ser identificado como as Grandes Mães Ancestrais

Por Sergio Roberto Silveira* 

 

A lei n 12.987/2014 (BRASIL, 2014) estabeleceu o dia 25 de julho como o dia nacional de Teresa de Benguela e da mulher negra, simbolizando a resistência e a liderança na luta contra a escravidão. Esse movimento de resistência e luta contra a escravidão foi reforçado ao considerar o dia 25 de julho como uma data de extrema relevância contra uma sociedade machista e racista em que se comemora o dia da mulher negra, latina e caribenha. É possível, então, se pensar na data como um marcador de luta contra o preconceito e fortalecimento da identidade cultural e de gênero. 

Ao se pensar no fortalecimento da identidade cultural e de gênero, é possível se refletir a respeito da força da mulher negra como propulsora da constituição do culto de Orixás no Brasil, em especial o Candomblé, numa expressão matriarcal. 

O culto aos Orixás tem em sua essência na representação do feminino a expressão do poder e da harmonização da vida em sociedade. A mulher assume a liderança na organização e operacionalização do poder espiritual, da otimização da vida com a energia vital e da vida em sociedade. E, falando-se sobre energia vital, vida e sociedade remete ao conceito, os sentidos e significados das Iya Mi Osoronga, as Grandes Mães Feiticeiras. 

Ao se tratar das Casas de Orixás tradicionais no Brasil há sempre um enorme mistério e segredo em torno do culto às Iya Mi Osoronga. Moura (1994) ao se reportar às Iya Mi Osoronga apresenta a expressão, Quando se pronuncia o nome de Iya Mi Oxorongá quem estiver sentado deve se levantar, quem estiver de pé fará uma reverência pois esse é um temível Orixá, a quem se deve respeito completo, o que de tal forma reflete o respeito e poder que esse culto representa no interior de uma Casa de Orixás. Dessa forma, nesse artigo busca-se tratar o tema do poder feminino no culto aos Orixás sob a perspectiva das Iya Mi Osorongá. 

 

Iya Mi Osoronga e a amplitude de conceitos e significados na cultura africana 

 

O primeiro conceito das Iya Mi Osoronga pode ser identificado como as Grandes Mães Ancestrais, na totalidade da Mãe Terra, fonte criadora, gestora da essência dos seres. Nesse aspecto, os seres são representantes de sua ancestralidade ao caminharem sobre a Terra, bem como, evidencia-se sua representação no elemento feminino como detentora da possibilidade de dar continuidade à ancestralidade. 

Um segundo conceito importante a ser destacado é o elemento corpo no qual se consagra sua expressão na vitalidade e no elemento sangue, o qual percorre os elementos viscerais e estruturas do ser vivo. Cada ser vivo é a expressão de sua ancestralidade. Dessa forma, o conceito das Grandes Mães reside no interior de cada ser vivo e, se exalta, na personificação feminina com o poder de gerar e dar vida aos descendentes. Cada descendente é a manifestação de um corpo sobre a Mãe Terra. 

Como terceiro conceito pode-se observar seus elementos nas representações como donas da noite, donas dos pássaros noturnos, moradora das copas das árvores. Seu significado se estende àquilo que é observável e não observável pelos olhos humanos, permitindo do topo das copas árvores e nos voos dos pássaros enxergar o coletivo. O momento da noite com o sono das pessoas, elas sobrevoam pelos ares com perfeito controle e sincronia espacial e temporal do destino dos seres vivos. Nesse aspecto, traz ao elemento feminino o poder de compreender e manipular a sensibilidade e a magia. 

Desse modo, a presença das Grandes Mães é observada dos primórdios da criação do mundo e se estabelece até os dias atuais com cada ser vivendo sobre a própria Terra. O elemento em comum em todo esse processo é a energia vital que mantém a vida. A energia vital representa a essência que dá vida ao planeta e, também, a essência que permite cada ser manter-se vivo sobre o planeta. As Grandes Mães se manifestam, assim, na existência do todo e do individual, seja feminino ou masculino. Todavia, na figura feminina elas se consagram como a expressão da criação e continuidade da existência. 

Em o livro Mitologia dos Orixás (PRANDI, 2001, mito 204) depara-se com os seguintes versos: 

 

As Iá Mi Oxorongá são nossas mães primeiras, raízes primordiais da estirpe humana, são feiticeiras. 

São velhas mães-feiticeiras as nossas mães ancestrais. 

As Iá Mi são o princípio de tudo, do bem e do mal. 

São vida e morte ao mesmo tempo, são feiticeiras. 

 

Nesse mito, Prandi (2001) as apresenta como o tudo e o todo, da criação do planeta aos seres nela habitantes. Carregam o sentido da magia, no caso a feitiçaria, com domínio sobre a vida e a morte. Expressam o sentido das Primeiras Mães permitindo a continuidade dos seres sobre a Terra através do elemento feminino. 

 

O poder feminino e as Donas e Herdeiras do Axé no Culto aos Orixás 

 

O culto aos Orixás tem suas origens situadas nas tradições do grupo Yorubá no continente africano, sendo matriarcal em sua essência. A participação e liderança masculina é identificada nos diversos rituais, contudo, a participação feminina é primordial para sua realização. 

O poder ancestral oriundo do culto das Iya Mi Osorongá, presente nas mulheres por natureza, configura-se como elemento essencial para a manipulação da energia vital, propulsora da vida em todos os seres no planeta. Esse culto também é um regulador social. Membros da comunidade se reúnem com regularidade sob os preceitos e segredos presentes no interior do culto das Grandes Mães para manipulação da energia vital em rituais específicos, bem como para discutirem os problemas enfrentados no cotidiano, organizar estratégias de soluções e comemorar as conquistas alcançadas. A figura feminina tem absoluta importância tanto na manipulação do Axé quanto na avaliação e organização social de seus membros. 


O culto aos Orixás tem suas origens situadas nas tradições do grupo Yorubá no continente africano, sendo matriarcal em sua essência. / Sergio Roberto Silveira

Ao ser trazido ao Brasil, o Culto aos Orixás assume variadas denominações e formas de desenvolvimento, sendo neste texto retratado o conhecido Candomblé. Religião de resistência contra o racismo, preconceito e opressão. Grandes matriarcas podem ser citadas como exemplo de resistência, poder e fé para consagrar o culto como elemento cultural da identidade brasileira: (in memoriam) - Mãe Menininha do Gantois, Mãe Olga do Alaketu, Mãe Stella de Oxossi. Na concepção ancestral, as herdeiras do Axé e manutenção do poder espiritual e social pode-se citar entre tantas atuantes nessa existência – Mãe Carmem do Gantois, Mãe Ana de Xangô (Afonjá); Mãe Meruca. 

A titulação de Mãe de Santo é uma tradução para a expressão Iyalorixá, a grande mãe dos ancestrais Orixás, expressando o poder feminino nas práticas religiosas e nas práticas sociais da comunidade. Cada Iyalorixá negra, herdeira da transmissão do Axé dos Orixás expressa o poder e a magia das Iya Mi Osoronga, seja nos rituais sagrados de energia vital ou nas atividades sociais que os membros internos exercem e naquelas envolvendo a comunidade circunscritas nos entornos da Casa de Orixás. A Iyalorixá é a verdadeira representação da cultura africana e afro-brasileira constituinte do poder feminino de luta e resistência na constituição da cultura brasileira. 

 

PARA SABER MAIS 

 

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 

NASCIMENTO, Elisa Larkin. (Org.). Guerreiras da Natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008. 

NÓBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Mãe Menininha do Gantois: uma biografia. Salvador: Editora Corrupio, 2006. 

 

* Professor do Departamento de Pedagogia do Movimento do Corpo Humano. Escola de Educação Física e Esporte/EEFE. Universidade de São Paulo/USP. 

 

Edição: Heloisa de Sousa