Paraíba

À TOQUE DE CAIXA

Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UFPB denuncia racismo institucional na criação de comissão de heteroidentificação pela Reitoria; servidores têm sido conduzidos compulsoriamente a participarem da comissão

Reitoria iniciou o processo sem diálogo com grupos das discussões étnicorraciais

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Reprodução - Foto Reprodução

O Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros e Indígenas da UFPB (Neabi) efetivou uma denúncia de racismo institucional no âmbito da UFPB ao Ministério Público Federal (MPF), na última segunda-feira (21). 

A denúncia é sobre a criação de uma comissão de heteroidentificação institucional por meio da Reitoria e da Progep (Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas), com o objetivo de instituir e regularizar o procedimento de heteroidentificação obrigatório e complementar para fins de confirmação de autodeclaração de pretos e pardos aos candidatos que concorrem às vagas de cotas raciais em concursos e seleção de estudantes ingressos.

Segundo o documento entregue ao MPF, a comissão foi criada sem a devida discussão com os grupos que exercem o debate étnicoracial dentro da universidade, a exemplo do Neabi. Além disso, a comissão tem designado servidores que vêm se mostrando relutantes em compor a comissão, preocupados com implicações nas suas funções originais, ou porque não se sentem imersos na temática.

“Essa questão toda da comissão de heteroidentificação é um problema antigo que nós temos aqui na UFPB. Já faz alguns anos que o Neabi vem reivindicando para que fosse criada uma comissão deste tipo aqui na instituição, que fizesse o processo de confirmação, tanto nos concursos públicos realizados pela universidade quanto para os ingressos no Sisu”, explica Mojana Vargas, integrante do NEABI-CCHLA/UFPB e professora do Departamento de Relações Internacionais da UFPB.

Ela acrescenta, inclusive, que há vários casos de denúncia de fraudes, sobretudo no Sisu, de estudantes ingressantes da UFPB por não existir um mecanismo institucional de acompanhamento e de verificação da implantação das cotas étnicorraciais.

“A gente vem batendo nesta tecla há bastante tempo. A UFPB chegou a criar, em 2020, uma comissão de inquérito especificamente para identificar avaliar os processos de supostas fraudes no Sisu, mas esta comissão foi desfeita e nós não sabemos o que foi encaminhado daí por diante”, complementa Mojana.

Em julho deste ano a situação envolvendo a comissão de heteroidentificação foi levada pelo Neabi para uma reunião do Consuni. Na ocasião, o Núcleo propôs a criação de um grupo de trabalho envolvendo os núcleos e grupos de pesquisas sobre a temática na UFPB.

“A Reitoria iniciou este processo sem nenhum diálogo com o Neabi, e nem com qualquer grupo da universidade que atua no campo das relações étnicorraciais, nem das ações afirmativas, e esse processo chegou ao nosso conhecimento em julho de 2023 quando nós fomos informados, indiretamente, por servidores da universidade, que estavam sendo indicados e que a comissão já tinha sido criada de fato. E fomos procurados por servidores que estavam se sentindo assediados e obrigados a fazerem parte desta comissão de heteroidentificação", detalha a professora. 

Ela também conta do estranhamento de se deparar com algumas áreas insólitas no plano da comissão:

“Num primeiro momento, a universidade teve a ideia de constituir uma comissão permanente de heteroidentificação constituída apenas por servidores técnico-administrativos com o cargo de assistentes sociais. Depois eles ampliaram este espectro para incluir biólogos e enfermeiros e, enfim, várias categorias que, no entendimento da universidade, teriam uma relação assim, quase que natural com a temática das relações étnicorraciais, e que poderiam cumprir este papel independentemente do fato de eles não terem qualquer tipo de experiência neste assunto”.

Após a reunião do Consuni, a Reitoria acatou a suspensão da portaria, mas insistiu em continuar a comissão de forma provisória para tratar dos processos seletivos pendentes.

O Neabi, em seguida, se deparou com um plano de capacitação inadequado: um curso com 20 vagas e 20 horas de duração, que disponibilizava uma formadora pedagógica sem o perfil alinhado com as orientações definidas pela Instrução Normativa nº23, do Ministério da Gestão e Inovação, publicada em 25/07/2023.

“Já havia um curso, uma capacitação elaborada para os integrantes da comissão. Nós também descobrimos que a pessoa escolhida para fazer esta capacitação é uma pessoa sem experiência nenhuma, nem no tema das relações raciais, nem no tema das ações afirmativas, e menos ainda em processos de identificação. Então, nós percebemos que seria uma formação absolutamente inócua, mas a despeito disso, a Reitoria continuava pressionando as pessoas para que se integrassem nesta comissão, e seguiu pressionando o Neabi para que também indicasse pessoas para este propósito”, comenta ela.

Assédio a servidores técnicos e docentes 

A denúncia ao MPF também afirma que tem prevalecido assédio aos servidores técnicos e docentes por meio de ofícios encaminhados a chefias, na tentativa de conduzí-los/las a integrar a comissão.

“Nós queríamos uma representação ampla, um grupo de trabalho para a gente definir então como funcionaria esta comissão de heteroidentificação, como seria composta e tudo o mais para poder abranger todas essas categorias, mas no dia seguinte à reunião do Consuni, já estava marcada uma reunião, que foi convocada pela Reitoria, com a chefia de gabinete e as pessoas que tinham sido indicadas para participarem da comissão”.

Alunos prejudicados

Alguns alunos estão sendo prejudicados pela ausência da comissão, como é o caso de Nuno Rafael, estudante de Antropologia. Ele comenta que já está no primeiro período de dilatação do curso, onde os discentes podem solicitar apenas dois pedidos.

Ele afirma que se matriculou na disciplina de Português Instrumental, mas que no período de 2023.1 não haveria professor para a disciplina e a explicação é de que estavam esperando a contratação de um professor substituto.

“Fui informado na coordenação do curso de Letras que esta questão estaria a cargo da comissão de heteroidentificação, que não estava funcionando pelo motivo de não haver membros para a comissão. Fui orientado a fazer pressão na Reitoria para que andasse o meu processo”.

Ele comenta que vem de Belém-PA, e que entrou pela política de cotas, a de cor, de escola pública e de renda per capita, mas que é um adulto detectado com TDAH tardio e que tem  dificuldades de se manter na capital, e até mesmo de concluir o curso.

Dossiê das Ações Afirmativas na UFPB 

Um dossiê produzido pelo Neabi também foi ajuntado aos documentos entregues ao MPF. O ‘Dossiê - 2013 - Dossiê Ações Afirmativas na UFPB: a longa década da democratização inconclusa no ensino superior (1999-2012)’ busca historicizar o processo de luta pelas ações afirmativas na instituição. Em 2017, ele foi atualizado com um levantamento sobre o estado de implantação das ações afirmativas, até aquele momento.

“O dossiê é um documento público que está em circulação já faz um tempo. E a gente o recuperou em meio à discussão da heteroidentificação porque, nas conversas com a gestão da universidade, eles sempre falavam que não sabiam ou não conheciam nada. A Reitoria estava se colocando como se estivesse fazendo tudo do zero, como se não houvesse uma discussão prévia na instituição. E então mencionamos o documento, inclusive com indicações de como montar as comissões de heteroidentificação”.

“O que nós queremos é que se estabeleça, de fato, um diálogo real com a Reitoria para que as irregularidades desse processo sejam revistas, para que o processo seja refeito, e que a gente possa instituir uma comissão de heteroidentificação eficaz para o trabalho que ela tem previsto; um trabalho grande, delicado, que precisa ser feito de forma estruturada e de maneira adequada”, complementa a professora Mojana Vargas.

Leia aqui a Denúncia feita ao MPF

Leia o ‘Dossiê - 2013 - Dossiê Ações Afirmativas na UFPB: a longa década da democratização inconclusa no ensino superior (1999-2012)’.

 

Edição: Cida Alves