Paraíba

Coluna

A visão Potiguara sobre a influência africana na musicalidade ritualística do Toré

Na esquerda da foto o Cacique Djalma e sua esposa Dona Nazaré, no meio o Pajé Cleiton e o metres gaiteiro Jaílson, na direita os gêmeos Pedro e Paulo, filhos do cacique Djalma - Foto: Ezequiel Maria
Da mistura do samba - de raízes africanas - com o Toré dançado pelos nativos, nasce o coco de roda

Por Fernando Alves Iziquiel da Silva (Kaberekoara Potiguara) 

Na visão cosmológica dos povos indígenas, aquilo que os não indígenas chamam de cultura representa, na verdade, a expressão íntima de suas crenças e tradições. Para os nativos, crenças e tradições expressam formas de comunicação com os ancestrais e os elementos da natureza, maneiras pelas quais atribuem significado às suas vidas e buscam compreender os eventos que os cercam. Deste modo, há uma comunicação constante com o passado e aqueles que vieram antes, conectando suas vidas a eventos de tempos antigos.

A música é o meio mais antigo que o ser humano buscou para expressar seus sentimentos e de se comunicar com o mundo espiritual. A voz, contudo, é os sons ordenados racionalmente e de forma perfeita que proporcionam aos ouvintes compreender as intenções do outro. A música, por sua vez, é a forma melódica e rítmica dos sons ordenados, com o sentido de tocar o ouvinte sentimentalmente, proporcionando sentir o que o eu lírico sente.

Na musicalidade Potiguara, também expressa essas formas de se comunicar com o sagrado. É importante ressaltar que as atuais músicas que compõem o ritual do Toré, trazem elementos de povos variados como Indígenas, brancos e negros; essas formas musicais compõem o que chamamos de Toré Sagrado.

Em uma das músicas cantadas no final do Ritual do Toré, é possível encontrar uma música de origem a africana e que se popularizou no território brasileiro entre os capoeiristas. A música é a seguinte:
"Apanha a laranja do chão tico, tico...
Seu Manoel vai embora e eu não fico...
Minha toalha de renda sem bico..."* (Versão do Toré)

Essa música é utilizada há muitos anos na capoeira como música de encerramento. Essa cultura acabou sendo incorporada no Toré Sagrado.
Para a nação Potiguara, que habita o litoral norte do estado da Paraíba, a música é uma forma de resistência e um meio de conectar-se com os antepassados. Embora sua religiosidade tenha sido influenciada pelas práticas impostas pelos europeus aos povos indígenas, fragmentos de sua cosmovisão sobreviveram ao genocídio perpetrado pelos colonizadores. A proibição da língua Tupi pelo Marquês de Pombal em 1758 também afetou negativamente o patrimônio musical-religioso do povo Potiguara.

O Toré é o gênero musical ancestral praticado por diferentes povos indígenas, dentre os quais os Potiguara. Com finalidades diversas, o Toré era originalmente parte de rituais sagrados, dentre esses rituais se destaca um cujo os não indígenas chamaram de "banquete antropofágico". A obra “Viagens a Terra do Brasil” do autor Hans Staden, traz o relato que ele teve quando esteve cativo entre os Tupinambás em Pernambuco, no ano de 1549. As músicas eram entoadas em conjunto e acompanhadas por instrumentos primitivos, como o maracá, o bombo, a gaita, entre outros. A dança e os adereços utilizados pelos nativos faziam parte das vestimentas litúrgicas desses rituais. A música tinha múltiplas finalidades, desde momentos de alegria até ocasiões mais solenes. Entretanto, as constantes invasões e massacres sofridos pelos Potiguara contribuíram para o desaparecimento de partes de suas tradições, incluindo a musicalidade ritualística.

Após 500 anos de resistência, os Potiguara continuam a lutar pelo direito à terra que lhes pertence. Nesse processo, surgiu a necessidade de revitalizar as crenças e tradições de seus antepassados. Essa volta às origens e o ressurgimento da religiosidade indígena resultaram na fusão de crenças entre os diversos povos que chegaram ao Brasil. A crença dos indígenas, as orações dos cristãos europeus e os orixás africanos se mesclaram para criar uma nova forma de culto espiritual, conhecida como Jurema. A semelhança entre os rituais religiosos, conduzidos por meio de instrumentos, tanto pelos nativos brasileiros quanto pelos povos africanos, deu origem a uma crença compartilhada por ambos.

Dentro dos rituais do Toré Potiguara, é possível perceber nas letras das músicas evocações e invocações. Nas canções de evocações, trazem a memória antigos lideres que foram importantes para aquela comunidade, por exemplo na canção “Daniel desceu a serra todo coberto de pena”, aqui, relembram o evento do sepultamento de um líder importante.

Quando cantam as músicas da Jurema e bebem o vinho durante a cerimônia religiosa, ocorrem manifestações dos "seres de luz", ou como os nativos os chamam, os "encantados", essa é a invocação, onde pedem auxilio a seus entes protetores. A junção do catimbó indígena com as formas de culto das religiões de matriz africana resultou no movimento chamado "Juremeiros", praticado por ambos os povos. Dessa interação cultural, da mistura entre o samba de roda, que tem raízes na capoeira de Angola, e o Toré dançado pelos nativos em suas festividades, surgiu o famoso gênero musical conhecido como "coco de roda".

Chico Pereira, em seu livro “Paraíba memória cultural”, traz uma foto da pintura feita por Zacharias Wagener, em 1644, de indígenas da Paraíba dançando e faz um paralelo entre a forma atual de dançar, demonstrando a semelhança ainda presente. Dentro do território Potiguara, é possível vivenciar essa riqueza histórica e, por meio do ritual do Toré, constatar a influência africana nas letras das músicas.

Em suma, a música, seja no ancestral Toré dos Potiguara ou na fusão cultural que resultou no coco de roda, desempenha um papel fundamental na preservação das tradições e na conexão espiritual dos povos indígenas do Brasil. Essa expressão artística transcende fronteiras e sobrevive ao longo das gerações, mantendo viva a herança cultural e espiritual de um povo que resistiu com determinação ao longo dos séculos. A música, assim como as tradições religiosas, continua a ser uma força unificadora e uma fonte de resiliência para os Potiguara e outros povos indígenas, permitindo-lhes manter vivos os laços com seus antepassados e suas crenças profundamente arraigadas em uma história de luta e resistência. Essa riqueza histórica e cultural é uma parte essencial do patrimônio do Brasil, que merece ser valorizada e preservada para as futuras gerações.
 

*Jovem indígena do povo Potiguara da Paraíba, professor de Língua Tupi e Etno-História da Escola Indígena Cacique Domingos na Aldeia Jaraguá, município de Rio Tinto. Graduando em Letras-português pela Uniasselvi de Juiz de Fora - MG. É meliponicultor pelo Instituto Nacional de Meliponicultores de Montes Claros – MG, atua como assistência de manejo pela a Associação de Apicultores Paraíba Mel em Baía da Traição.

 


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Edição: Polyanna Gomes