Conheça a história de Salustia e Honorato, paraibanos afrodiáspóricos em busca de justiça social
Por Solange Rocha*
No decorrer do desenvolvimento de minhas pesquisas e estudos, desde o fim da década de 1990, as referências à cidade de Mamanguape têm despertado minha atenção. Além de ser um território ancestral dos povos de etnia potiguara, algumas histórias esparsas de personagens negros e a sua destacada importância econômica em algumas décadas século XIX, após os processos históricos de invasão (século XVI) e de reocupação dessas áreas pelos povos europeus (portugueses e seus descendentes), tem me levado a refletir, primeiro, como se deu as alterações e a reconfigurações (espacial, socioeconômica e culturais) em tal localidade? Segundo, que novas relações se estabeleceram entre os habitantes da área da antiga Monte Mor, que apresentaram uma variedade de indivíduos no século XIX: potiguara, homens e mulheres das elites europeias, pessoas afrodiaspóricas/africanas e seus descendentes na sua ampla diversidade, incluindo as escravizadas e livres?
Dessa forma, atualmente, venho revisando alguns trabalhos estudos científicos para sistematizar as narrações relativas a uma parcela do litoral norte paraibano e avançar com elaboração de análises no campo da história da diáspora atlântica para compreender, por exemplo, a relação das atividades socioeconômicas de Mamanguape na “economia-mundo” capitalista do século XIX e aspectos socioculturais entre os sujeitos desse espaço.
Na elaboração deste breve Artigo para a coluna “Memórias e Poéticas Pluri-versas Antirracistas”, apresento dois personagens históricos estimuladoras/es de meus estudos recentes. Salustia, uma mulher negra e escravizada, que residia e trabalhava na cidade de Mamanguape nos anos finais do século XIX, quando na década de 1870 era composta por cerca de 636 pessoas escravizadas (315 mulheres e 321 homens) ditas “pretas e “pardas”, numa população total de 17.463 indivíduos. Essa personagem histórica se sobressaiu num grupo de mais de seis centenas de pessoas cativas por ter recorrido à justiça da época para conquistar sua carta de liberdade/alforria, iniciando sua demanda no Juizado de Órfãos, em março de 1885, com apoio de um curador/tutor. De forma resumida, após enfrentar os tribunais de Mamanguape (Paraíba) e o de Recife, o de Relação de Pernambuco (naquele período era uma instância superior ao da Paraíba), Salustia, com sua perspicácia, conquistou sua liberdade em poucos meses.
Outro personagem histórico, Honorato, um cativo urbano era integrante da Irmandade de Nossa Senhora do Rosários dos Homens Pretos de Mamanguape (1852), portanto, um praticante do catolicismo e, possivelmente, das festas afro-religiosas, como as do Rei do Congo e sua corte, realizadas na década de 1880. Por enfrentar alguns dissabores após as mudanças de dono, Honorato escolheu o suicídio, pois saiu do espaço urbano para uma área rural e passaria a trabalhar no eito, na lavoura de açúcar. Ademais, rastros históricos indicam que passou a ser proibido de manter suas vivências culturais. Registro ainda que os textos de Estêvão Palitot, lidos a partir do início dos anos 2000, foram um dos que proporcionaram narrativas da história mais recente do mundo dos potiguara. Para aquelas e aqueles que estão interessadas/os na trama sociojurídica e dramas dos personagens históricos citados, ao fim do artigo, sugiro alguns textos como dicas de leitura.
Outro fator estimulante para desenvolver conhecimentos com dimensões históricas sobre Mamanguape refere-se à finalização de um projeto internacional de digitalização de documentos (fui uma das coordenadoras) que durou quase uma década (2013-2021) e nos possibilita acessar uma variedade de memórias históricas de Mamanguape. Órgãos públicos como o Juízo de Órfãos e Ausentes nos legaram testamentos, inventários, procurações, prestações de contas de tutores, entre outros, que são memórias oficiais que podem proporcionar a produção de narrações sobre o tempo passado e das experiências humanas, de homens, crianças e mulheres de uma variedade de classes sociais. Certamente, conhecer processos sociais de hierarquias, assimetrias de gênero e ações insurgentes podem ser significativo para a ampliação de conhecimentos de mulheres negras e indígenas e pode despertar alguma valia à COCAM/RECOSEC.
O fragmento de documento (digitalizado e datado de 1780) que abre este artigo faz parte de pesquisa do historiador Matheus S. Guimarães, datada de 2015. Acerca dele, assinalo, primeiro, a persistência de resistência dos povos indígenas ao longo do processo de colonização e a consciência que tinham/têm do direito às suas terras; segundo, a capacidade de estabelecerem alianças frequentes para salvaguardar e reconquistar suas comunidades, incluindo algum acordo com os indivíduos escravizados, conforme as considerações de tensões e temores das autoridades coloniais da Paraíba presente na epígrafe.
Ademais, a documentação disponível em acervos digitais de Mamanguape, constituem oportunidades concretas para efetivação de outras investigações, como questões relacionados a conflitos agrários e as lutas por (re)ocupação da terras indígenas; as interconexões entre sujeitos afrodiaspóricos e os povos indígenas que viveram numa sociedade escravista, marcada por tensões, relações de forças desiguais, mas estes não deixaram de estabelecer alianças para oporem-se às injustiças ao enfrentarem os limites institucionais e políticos de suas épocas, nos deixando uma memória de participação ativa e lutas sociais na história do Brasil. Por fim, entendo que pesquisar esses grupos subalternizados (e suas conexões com outros grupos) podem amplificar nossa consciência histórica, ou seja, pode ser uma forma de expansão de nossos conhecimentos como sociedade, assim como das injustiças sociais e suas complexidades.
*Docente do Departamento de História, do Programa de Pós-graduação e integra o Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista e o Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros e Indígenas/NEABI, todos na UFPB.
Dicas de Leituras:
LIMA, Maria da Vitória Barbosa. Liberdade interditada, liberdade reavida: escravos e libertos na Paraíba escravista (século XIX). Tese (Doutorado em História), UFPE, Recife, 2010. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/7610/1/arquivo845_1.pdf
PALITOT, Estêvão Martins. Os Potiguara da Baía da Traição e Monte-Mór: história, etnicidade e cultura. Dissertação de mestrado, PPGS/UFPB. 2005.
ROCHA, Solange P. Mulheres escravizadas na Paraíba oitocentista: trabalho, contradições e lutas por liberdade. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana B., GOMES, Flávio (Orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 84-97.
SILVA, Lucian Souza. Litígios pela liberdade: experiências e resistências de pessoas escravizadas e suas ações de liberdade, Paraíba (1870-1888). Escrita da História, [S. l.], n. 7, p. 92–126, 2017. Disponível em: https://escritadahistoria.com/index.php/reh/article/view/72 .Acesso em: 8 out. 2023.
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Edição: Polyanna Gomes