“Enquanto houver racismo, não haverá democracia”
Por Petrônio Domingues*
No dia 20 de Novembro comemora-se em todo o país o Dia Nacional da Consciência Negra. Mas como nasceu essa efeméride? Durante quase um século os diversos segmentos da população negra celebravam o 13 de Maio – dia da aprovação da lei que aboliu oficialmente, em 1888, a escravidão no Brasil – como data da conquista da liberdade formal na sociedade brasileira. No entanto, em 1971, surgiu o Grupo Palmares em Porto Alegre (RS), que, por meio de um de seus fundadores, Oliveira Silveira, lançou a ideia de se comemorar o 20 de novembro em oposição ao 13 de Maio. A Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, passou a ser rechaçada pelo Grupo Palmares, que a (des)qualificava de “farsa”, “engodo” e/ou “falsa liberdade”. A própria princesa Isabel, em vez de “redentora”, passou a ser vista como “impostora”. Assim, no lugar de uma branca da elite, o Grupo apropriou-se de um negro de origem popular – Zumbi (líder do Quilombo dos Palmares) – como herói e símbolo da resistência e luta contra a opressão racial, e o dia presumível de sua morte – 20 de novembro – como data a ser celebrada à luz de uma memória negra ressignificada.
Em canção produzida para trilha sonora do filme Quilombo, de Cacá Diegues, Gilberto Gil traduziu aquela atmosfera:
Zumbi, comandante guerreiro
Ogunhê, ferreiro-mor capitão
Da capitania da minha cabeça
Mandai a alforria pro meu coração
Minha espada espalha o Sol da guerra
Rompe mato, varre céus e terra
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira
Do maracatu, do maculelê e do moleque bamba
Minha espada espalha o Sol da guerra
Meu quilombo incandescendo a serra
Tal e qual o leque, o sapateado do mestre-escola de samba
Tombo de ladeira, rabo de arraia, fogo de liamba
Em cada estalo, em todo estopim, no pó do motim
Em cada intervalo da guerra sem fim
Eu canto, eu canto, eu canto
Eu canto, eu canto, eu canto assim
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira
Brasil, meu Brasil Brasileiro
Meu grande terreiro, meu berço e nação
Zumbi protetor, guardião padroeiro
Mandai a alforria pro meu coração
(“Zumbi, a felicidade guerreira”)
A partir daquele cenário havia sido plantada a ideia que floresceu e se expandiu pelo país até que, em 18 de junho de 1978, ocorreu em São Paulo a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), organização que representa um verdadeiro divisor de águas na luta antirracista no Brasil e inaugura a fase contemporânea do movimento negro. Em assembleia realizada em 4 de novembro de 1978, o MNU aprovou o 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra e a data 13 de maio como Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo.
Depois de uma longa e árdua campanha protagonizada pelo movimento negro – campanha que contou com a aliança e o apoio de alguns movimentos sociais, produtores culturais, artistas, políticos, pesquisadores e publicações acadêmicas –, o 20 de Novembro se consolidou, popularizando-se no seio da sociedade civil e sendo reconhecido por diversas instâncias do Estado brasileiro. Em contrapartida, o 13 de Maio foi praticamente jogado no limbo da memória nacional. O Dia da Consciência Negra, incluído no calendário escolar em 2003 e instituído oficialmente em 2011, pela Lei 12.519, e declarado feriado em mais de mil municípios brasileiros, é uma data de celebração da memória de Zumbi dos Palmares – o símbolo-mor da resistência negra.
O próximo 20 de Novembro vai ser mais um dia em que a sociedade brasileira terá a oportunidade de refletir criticamente sobre a situação da população negra. Já se passaram 135 anos da Abolição e esse segmento populacional ainda pugna no campo dos direitos e sonha com a conquista e usufruto da cidadania plena. Afinal, todos os indicadores de renda, ocupação, escolaridade, saúde pública, condições de moradia e desenvolvimento humano apontam que as pessoas negras levam desvantagens quando comparadas com as brancas.
É verdade que, hoje no Brasil, diversas políticas públicas e privadas de combate às desigualdades raciais estão em curso, das quais ganharam destaque a Lei 10.639 (a qual foi alterada pela Lei 11.645) e as políticas de ações afirmativas, notadamente o sistema de cotas para pessoas negras nas universidades públicas. Independentemente dos limites dos programas de ações afirmativas, cabe ressaltar o momento histórico em que o país atravessa: é a primeira vez que a sociedade civil concebe o racismo como problema público – processo pelo qual um problema coletivo assume um lugar privilegiado na agenda nacional. Mais ainda: é a primeira vez que o Estado brasileiro se engaja em implementar políticas públicas voltadas a combater esse problema.
Porém, neste 20 de Novembro, os afro-brasileiros – que formam a segunda maior população negra do mundo, ficando atrás apenas da Nigéria – não querem pautar somente a manutenção de tais políticas. Pleiteiam também ampliá-las. Anseiam eliminar as desigualdades raciais do mercado de trabalho, da representação na mídia, da política institucionalizada; aspiram acabar com a violência policial, com o tratamento diferenciado que muitas vezes recebem do sistema de Justiça e com o chamado genocídio da juventude negra; almejam tolerância aos seus cultos de matriz africana; esperam que o sistema educacional respeite as bases do multiculturalismo e da diversidade étnico-racial, descolonizando os currículos; querem políticas públicas especificas às mulheres negras, às comunidades remanescentes de quilombos e à valorização da saúde da população afrodescendente. Em suma, desejam que esta nação faça valer os princípios das democracias modernas, que procuram garantir que todos os cidadãos (“pretos”, “pardos”, “brancos”, “amarelos” e “indígenas”, conforme a classificação do IBGE) tenham igualdade de direitos (civis, sociais e políticos) e oportunidades. Pois, como proclama o Manifesto da Coalizão Negra por Direitos, “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”.
PARA SABER MAIS
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho & FERREIRA, Ricardo Alexandre. Três vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
MAUÉS, Maria Angélica Motta. “Da 'branca senhora' ao 'negro herói': a trajetória de um discurso racial”. Estudos Afro-Asiáticos, n. 21, Rio de Janeiro, 1991, p. 119-130.
SILVEIRA, Oliveira. “Vinte de Novembro: história e conteúdo”, Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. P. B. G. Silva e V. R. Silvério (orgs.). Brasília: INEP/MEC, 2003, p. 21-42.
*Doutor em História (USP). Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS)
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Edição: Polyanna Gomes