Paraíba

Coluna

Vamos fazer Palmares de Novo!

Na Serra da Barriga, União dos Palmares/AL. - Foto: Januário Garcia.
Lélia reafirma o compromisso de situar as experiências de reexistência da práxis negra em Palmares

Por Diego dos Santos Reis*

O ano é 1981. A voz-mulher que ecoa na Serra na Barriga, no Quilombo dos Palmares, é da filósofa Lélia Gonzalez: “Nossa festa hoje é homenagem à luta contra as injustiças raciais. Estamos aqui em Maceió, nesta virada de noite do 19 pro 20 de novembro, e reivindicando com toda força o tombamento da Serra da Barriga, primeiro e maior monumento da história das lutas populares deste país, da luta dos oprimidos, daqueles que nunca tiveram vez nem voz: Palmares significa isto!”. Da barriga, umbilicalmente implicada nas lutas e agendas do povo negro, essa voz retinta se une à Helena Theodoro, Edialeda Salgado, Abdias Nascimento, Januário Garcia e ao bando que, ressoando o lugar e a hora histórica, traz no brado negro a marca do que “não tem nem governo nem nunca terá”.

Palmares ressignifica isso. 

Se “a morte de Zumbi se transfigura no ato que, por excelência, aponta para vida”, como escreveu a filósofa em novembro de 1981, no ensaio Mulher negra, essa quilombola, Palmares tem na vida o seu esteio. Ao carregar nas tintas, Lélia reafirma o compromisso de situar as experiências de reexistência da práxis negra em Palmares, historicamente deslegitimadas, como fundantes do primeiro Estado democrático e livre das Améfricas. Não à toa, nos lembra a filósofa: “foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de liberação” (Gonzalez, 2020, p. 147). 

Em 18 de novembro de 1981, no 1° Simpósio Nacional Sobre o Quilombo dos Palmares, realizado entre 16 e 20 de novembro na Universidade Federal de Alagoas, em Maceió, na mesa-redonda Significados de Palmares para os negros brasileiros, Lélia apresenta-se ao lado de Zezé Mota, Joel Rufino dos Santos, Carlos Santos, Marcelo Máximo Dantas da Silva, com moderação de Clóvis Moura. Nesse evento, Palmares é revisitado como “a primeira tentativa de criação dessa sociedade igualitária, onde existiu uma efetiva democracia racial”, afirmaria Lélia (2020, p. 197). E a mulher negra, essa quilombola, que luta e educa “dentro do espírito antiescravista, anticolonialista e antirracista” (Gonzalez, 2020, p. 198), seria a responsável pela africanização da língua e da cultura brasileira. Recorda a filósofa que “seu gesto implica uma rejeição total da ordem que põe por terra o conjunto dos valores, instituições e práticas do colonizador. E este, supondo-se superior, é quem fica literalmente ‘desbundado’ em face de tanta contundência” (Gonzalez, 2020, p. 155-156).  

Esse 1° Simpósio foi acompanhado de perto pelos setores informacionais da ditadura empresarial-militar. Não é fortuito lembrar que, sob a ditadura, a Lei de Segurança Nacional, Lei nº 5.250, de 09 de fevereiro de 1967, em seus artigos 1º e 14º, dispunha que “não será tolerada a propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe” e que “fazer propaganda de guerra, de processos para subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe: Pena: de 1 a 4 anos de detenção”. Em 10 de novembro de 1969, com os atos de Médici, sob o argumento de perigo interno à ordem pública e reforço dos antagonismos sociais, proibia-se a veiculação pela imprensa de notícias ou debates sobre “índios [sic], esquadrão da morte, guerrilha, movimento negro e discriminação racial no país”. Em novo documento da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça, de 1974, no tocante à questão racial, reforça-se o argumento: “O assunto se presta à ideia-força do movimento subversivo-terrorista, por ser sensível à nossa população e contrário à formação brasileira. É explosivo e aglutinador, capaz de gerar conflitos e antagonismos, colocando em risco a segurança nacional¹” .

Em Maceió, no Relatório Confidencial do Serviço Nacional de Informações (SNI), datado de 4 de dezembro de 1981, são descritos com detalhes os acontecimentos do Simpósio. Na ocasião, o relatório destaca que, quando chamados para compor a mesa diretora do evento de abertura, os militares representantes dos comandantes de organizações militares de Maceió foram vaiados pelas/os estudantes, que superlotavam o auditório. Sublinha o relatório que o evento voltou-se à “valorização cultural da raça negra, admitindo-se, na oportunidade, ‘a existência do racismo, pregado abertamente no Brasil’”.  Racismo no Brasil? Cumé que é?

Contra o chamado Projeto Memorial Zumbi: Parque Histórico Nacional, que buscaria “recuperar o espírito de Palmares”, outro relatório do Ministério da Educação e Cultura, Divisão de Segurança e Informações, dessa vez datado de 07 de dezembro de 1981, reúne vasta documentação sobre: 1) Quilombo dos Palmares; 2) Movimento Negro Unificado; 3) Projeto Zumbi. O que atesta, como dizia Lélia, que a negrada incomodava. E muito. No ano seguinte, em 1982, em Lugar de Negro, escrito em parceria com o sociólogo Carlos Hasenbalg, a professora destacaria que “a longo prazo, o que se pretende é o impedimento de qualquer forma de unidade e organização do grupo dominado, mediante a utilização de todos os meios que perpetuem sua divisão interna. Enquanto isso, o discurso dominante justifica a atuação desse aparelho repressivo, falando em ordem e segurança sociais”.

Com a negritude na ponta da língua, a denúncia e o anúncio caminham lado a lado, como posicionamento estratégico, na luta antirracista. Ao chamar Lélia Gonzalez para a conversa, penso nas experiências da diáspora negra contrapostas à romantização das narrativas que seguem colonizando nossos imaginários educacionais e acadêmicos. A amefricanidade, tal como postulada pela autora, rearticula culturas em diáspora, tomando as resistências como elementos de agregação, de comunidade e de luta contra desumanização em face da empresa colonial. Ao celebrar duas décadas das ações afirmativas e o legado de Palmares, o pensamento amefricano afirma, no presente, o negrume que tinge o corpo das instituições educativas. E produz conhecimento com sentidos, todos eles, implicados na luta e no compromisso firmado na Serra da Barriga: vamos fazer Palmares de novo!

 

Notas

1 Disponível no Arquivo Nacional: AC ACE 78482/74, CNF, I/I.

Para saber mais: 

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Ensaios, intervenções e diálogos. Organização de Flávia Rios e Márcia Lima. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

 

*Diego dos Santos Reis é professor da UFPB. Lidera o Travessias – Grupo de Pesquisa em Filosofia e Educação Antirracista (UFPB/CNPq).

Edição: Carolina Ferreira