Por Janailson Almeida*
"Conjugar desenvolvimento e meio ambiente, também é investir nas oportunidades criadas pela transição energética, com investimento em energia eólica, solar, hidrogênio verde e biocombustíveis [...] são áreas em que o Brasil tem um potencial imenso, em particular no Nordeste brasileiro, que apenas começou a ser explorado." (Trecho do discurso do Presidente Lula na COP 27, Nov. 2022).
Após visita para ouvir as comunidades atingidas por megaempreendimentos de energias renováveis em territórios da agricultura familiar e reforma agrária nos estados da Paraíba e Pernambuco, pela Comitiva Interministerial da Secretaria Geral da Presidência da República – instituída pela PORTARIA SG/PR Nº 165, DE 8 DE SETEMBRO DE 2023, para criação da Mesa de Diálogo Energia Renovável: direitos e impactos – realizada entre os dias 23 e 31 de outubro de 2023, com reuniões e escutas às comunidades atingidas, acompanhadas das organizações sindicais e sociais, organizações não governamentais e movimentos sociais e reuniões com os governos estaduais e municipais, qual será o posicionamento do governo federal frente ao descaso e às exigências feitas pelas comunidades e organizações em seus territórios?
A fala do presidente Lula na COP 27, maior evento internacional para discussão de questões climáticas e transição energética, reforça uma lógica contrária àquela defendida pelas organizações e comunidades. Na carta, enviada após a visita e recebida pela Secretaria Geral da Presidência em 07 de Novembro de 2023, assinada por 24 organizações de base, que estão presentes nos territórios visitados pela comitiva em outubro de 2023, está clara a posição dos que são atingidos por megaprojetos e despossuídos de seus lugares:
"Nós, organizações sociais e sindicais, pastorais sociais, movimentos sociais do campo, povos indígenas e quilombolas, compreendemos que nossos territórios devem estar livres da exploração predatória dos seus recursos naturais e NÃO devem ser utilizados para a apropriação dos seus recursos energéticos por grandes empresas, em detrimento da produção de alimentos e da reprodução da cultura e vida dos povos. Às famílias camponesas, deve ser garantido o direito ao uso de suas terras e territórios para a produção de alimentos, em especial agroecológicos, para o autoconsumo, o abastecimento da política pública de oferta de alimentos e para a sociedade em geral, além da preservação ambiental e proteção dos bens naturais."
As organizações e comunidades ainda deixam claro ser a favor das energias renováveis e da transição energética, mas diagonalmente contra o modelo que está sendo implementado, que causa a desterritorialização dos camponeses por meio de um violento processo de espoliação das comunidades. A presença de aerogeradores e grandes usinas solares tem provocado graves problemas de saúde e adoecimento mental da população camponesa atingida, além de sérios danos ambientais, violações de direitos humanos e destruição de sistemas sustentáveis de produção de alimentos em territórios da agricultura familiar e assentamentos de reforma agrária. As organizações e comunidades ressaltam defender uma transição energética justa, com base em um modelo de geração de energia distribuída e comunitária, que favoreça as comunidades e territórios rurais no desempenho das suas atividades de produção agrícola, reprodução da vida e preservação de suas culturas, com fortalecimento das cadeias produtivas e agroindustrialização da produção familiar, com uso de tecnologia adaptada ao contexto dos territórios e comunidades e com preservação da herança cultural e da vida dos povos.
Recentemente, o Joio e o Trigo publicou artigo e podcast Prato Cheio, intitulado Energia solar em disputa: modelo descentralizado cresce, consolida nicho de mercado e inspira experiências populares, por Luísa Coelho (2023), que retrata a realidade de alguns dos territórios em conflito com empresas e megaprojetos de energias renováveis na Paraíba e Pernambuco, além de demonstrar a experiência da Cooperativa de Energia Solar Bem Viver, vinculada ao Cersa (Comitê de Energias Renováveis do Semiárido). O Cersa e outras organizações que atuam nos territórios por onde passa o chamado "corredor dos ventos" vêm buscando alternativas para a produção de energias renováveis, que não eliminem a possibilidade da produção agrícola no Semiárido, tendo em vista que os grandes empreendimentos de empresas estrangeiras buscam acessar esse imenso território, que abrange os nove estados da região Nordeste e norte de Minas Gerais. No total, ocupa 12% do território nacional e abriga cerca de 28 milhões de habitantes divididos entre zonas urbanas (62%) e rurais (38%), sendo, portanto, um dos semiáridos mais povoados do mundo, segundo o INSA (Instituto Nacional do Semiárido).
Em março deste ano, o governador da Paraíba João Azevêdo, atual presidente do Consórcio Nordeste, junto ao presidente Lula e o seu ministro de Minas e Energia Alexandre Silveira, mais autoridades da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), inauguraram o primeiro grande parque híbrido de produção da chamada "energia limpa", no Sertão paraibano. Segundo o Governo do Estado, "esse é o primeiro complexo associado de geração de energia renovável no Brasil que, de forma inédita, integra a geração de energia eólica e solar. O complexo se estende por uma área de 8,7 mil hectares nos municípios paraibanos de Santa Luzia, Areia de Baraúnas, São José de Sabugi e São Mamede. O complexo é composto por 15 parques com 136 aerogeradores e com capacidade instalada de 471 [megawatts] (MW) e de atender mais de 1,3 milhões de famílias por ano. O investimento para a implantação do complexo foi de R$ 3 bilhões e contribuirá significativamente para a segurança do setor elétrico e do sistema energético de transmissão nacional”. O médio sertão da Paraíba é o coração das renováveis no estado, com 111 dos 183 projetos fotovoltaicos e 561 dos 1.173 projetos de eólicas. Dos projetos de energia solar, 119 estão em outorga, 14 em operação, 4 em construção e 46 pré-construção. Dos projetos de energia eólica, 943 planejadas e aerogeradores 261 em operação, em todo estado (ANEEL, 2022).
No ato da inauguração, o ministro Silveira disse o seguinte: "o sol e o vento serão os maiores indutores do desenvolvimento do Nordeste brasileiro, por meio da geração de energia limpa e renovável [...]". Nesse mesmo dia, era retomado o Programa Nacional de Aquisição de Alimentos (PAA), da Companhia Nacional de Abastecimento, ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (Conab/MDA), em evento na cidade de Recife/PE, também com a participação do presidente Lula. Já após a visita da comitiva da presidência, nesse mês de novembro de 2023, foi anunciado o início das obras para construção de um outro complexo de energias renováveis pela gigante estatal chinesa Companhia das Três Gargantas (CTG), no Seridó paraibano. Segundo governo local, "o Complexo Eólico Serra da Palmeira irá se estender por cinco municípios paraibanos (Picuí, Nova Palmeira, Pedra Lavrada, São Vicente do Seridó e Baraúna) e quando entrar em operação terá uma capacidade instalada de 648 MW, gerando energia capaz de atender 1,7 milhões de habitantes, 40% da população da Paraíba".
Embora, muitas vezes, torres eólicas em cima das serras pareçam bonitas a quem passa pelas rodovias, olhando de longe; e soe interessante a ideia de desenvolvimento regional através desses grandes empreendimentos, o que está por trás de tudo isso é uma brutal perda de soberania nacional e uma das mais violentas formas de opressão dos povos do campo. É conhecido o modelo energético brasileiro, no qual atualmente mais de 85% da energia gerada já vem de fontes renováveis, sendo mais de 55% gerada por hidrelétricas, de acordo com o Ministério de Minas e Energia. Já a Europa ainda possui cerca de 85% do seu consumo de energia advindas de fontes não renováveis, de acordo com a EU Environment Agency (2023). E segundo a International Energy Agency–IEA (2023), o mundo deve chegar a 25% da sua geração de energia renovável até 2025.
Por trás de tanto empenho em transformar o Brasil em um grande produtor de energia renovável, está a possibilidade concreta e real de obter a primeira commodity energética para exportação: o "hidrogênio verde"
A quem interessa tanto investimento e tanta produção de energia? A resposta, mais do que objetiva, vem sendo emitida voluntariamente pelos principais meios de comunicação do país. Por trás de tanto empenho em transformar o Brasil em um grande produtor de energia renovável, está a possibilidade concreta e real de obter a primeira commodity energética para exportação: o "hidrogênio verde". Que de verde só tem o nome, por ser produzido a partir de fontes renováveis, não importe a que custo. Reportagem recente do Fantástico mostra o interesse da Europa e outros grandes atores da geoeconomia global, no hidrogênio verde produzido no Brasil. A Europa pretende investir 8 bilhões de dólares até 2030 no Complexo do Pecém no Ceará para produção de hidrogênio verde. A União Europeia busca descarbonizar a sua economia em 100% até 2050. Corné Hulst, gerente geral do porto de Roterdã, disse que "o porto já tem a infraestrutura, mas não o suficiente para abastecer toda a Europa. Precisamos importar. Por isso, a parceria com o Brasil é tão importante". Segundo ele, "o Brasil tem o que nós [os europeus] queremos. Sol, vento e tecnologia para exportar para a Europa". O professor Ricardo Ruther, da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, principal expoente da pesquisa em hidrogênio verde no Brasil, anuncia que "até o ano 2030, o Brasil vai ter a grande chance de se estabelecer, de se consolidar como um grande produtor de hidrogênio verde", como pode-se observar no artigo do G1 sobre a reportagem.
O que está proposto para o Brasil com a produção de energias renováveis para uso na quebra de moléculas de água para produção de hidrogênio verde para exportação, é um escandaloso processo de reprimarização da economia do país, com requintes absolutamente vis de neocolonialismo. Gastar-se-á uma quantidade imensurável de água para quebra de moléculas e separação de H2 e O, extraindo o hidrogênio para ser envasado e exportado; e produzir amônia na forma de adubo químico para as lavouras do agro. Para tanto, é necessário um gasto gigantesco de energia e, portanto, a necessidade de latifundiárias usinas eólicas e solares. Trata-se de uma questão agrária original, em que as empresas se apropriam abusivamente das terras onde se concentram outros bens naturais (sol e vento), caracterizando uma exploração primitiva da renda da terra, agora estendida também à renda do sol e do ar. Nesse contexto, o Nordeste brasileiro está para o capital energético, como o MATOPIBA está para o capital agrário, e o resultado não deve ser diferente. Haverá uma arremetida brutal e violenta contra comunidades e territórios camponeses, indígenas, quilombolas, com níveis sangrentos de conflitos, estrangeirização de terras e perda da soberania nacional, que já está acontecendo.
A posição dos governos tem sido de comodismo, aceitação, conciliação, conivência ou negligência frente ao descaso o qual já sofrem as comunidades. Pelo contrário, há um incentivo generalizado a tal processo de exploração. Parte do poder público tenta negociar e barrar alguns processos que violam o direito ambiental. Forças políticas e sociais da sociedade civil em nível local tentam chamar atenção para os diversos problemas. Na base, o povo organizado, os movimentos e organizações sociais se preparam para enfrentar um modelo destruidor de vidas e da natureza, e vai, de diversas formas, ao passo em que constrói alternativas para um modelo energético descentralizado, democrático e justo.
*Janailson Almeida é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Mestre em Desenvolvimento Territorial.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.
Apoie a comunicação popular, contribua com a Redação Paula Oliveira Adissi do Jornal Brasil de Fato PB
Dados Bancários
Banco do Brasil - Agência: 1619-5 / Conta: 61082-8
Nome: ASSOC DE COOP EDUC POP PB
Chave Pix - 40705206000131 (CNPJ)
Edição: Carolina Ferreira