Paraíba

Coluna

Francisco Gangá e Cosma Corrêa: um casal africano na cidade da Paraíba (século XIX)

Igreja de Nossa Senhora do Rosário da cidade da Paraíba. - Fonte: Acervo Walfredo Rodriguez.
a luta pela liberdade se deu das mais variadas formas e era cotidiana

Por Matheus S. Guimarães*

A cidade muda com o tempo e, ao passarmos por suas ruas, mal podemos imaginar as histórias das pessoas que por elas atravessaram. As poucas referências ao passado existentes nas ruas da cidade, comumente dizem respeito aos espaços de poder e das elites, sejam casarões, igrejas ou prédios administrativos coloniais/imperiais. Isso também vale para os registros escritos sobre as vidas das pessoas. Se buscarmos pelas histórias das pessoas africanas escravizadas, que viveram na cidade da Paraíba, as dificuldades são maiores, pois poucos são os vestígios que nos ficaram.

Em um tempo marcado pela escravidão, inúmeras pessoas circulavam pelas ruas da cidade, exercendo as mais diversas atividades, muitas delas tinham vindo da África e passado pela brutalidade do navio negreiro. Mas aqui elas viveram e buscaram cotidianamente construir redes de solidariedade e formas de resistir e burlar o sistema escravista. Duas delas foram Francisco Gangá e Cosma Correa, “pretos forros”, ou seja, pessoas africanas que tinham conseguido sua liberdade. Poucos são os registros sobre ambos, mas nos detalhes podemos buscar informações importantes para compreender mais sobre como foram suas experiências na Paraíba.

No dia 15 de fevereiro de 1844, Francisco Gangá e sua esposa, Cosma Corrêa, encontraram o tabelião Joaquim Rodrigues Segismundo, para abrir um testamento, registrando os seus bens e o que deveria ser feito quando morressem. Um dos últimos desejos do casal foi o de ser sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, irmandade que faziam parte, deixando também esmolas para tal. 

As irmandades eram agremiações religiosas muito comuns no Brasil colonial e imperial e tinham como objetivo fazer ações de caridade e estabelecer vínculos de solidariedade, garantindo condições de sepultamento para os irmãos e as irmãs que delas faziam parte. Foi comum a criação - em vários lugares do Brasil - de irmandades de pessoas negras, homenageando diversas santas e santos católicos, a exemplo de Nossa Senhora do Rosário.

No caso da Paraíba, há referências a essa irmandade, situada na capital, desde o final do século XVII. A igreja terminou de ser construída no início do século XVIII, ficando em pé até o ano de 1924, quando foi demolida para dar lugar ao atual Ponto de Cem Réis. Ao redor da igreja, onde hoje é a praça, havia o local onde os irmãos e irmãs, como Francisco Gangá e Cosma Corrêa, eram sepultados.

Exercer a fé católica era obrigatório naquele período e, pela vivência na irmandade, é provável que Francisco Gangá se dissesse católico. Porém, um detalhe chama atenção. O processo de escravização passava pela mudança do nome e, ao serem batizadas, essas pessoas deveriam assumir um novo, agora católico. Talvez Francisco, como foi registrado, fosse chamado de outra forma, mas não temos como saber qual. O detalhe está no seu segundo nome. Mesmo assumindo-se como Francisco, ele não abriu mão de lembrar de sua terra natal. Gangá não era um sobrenome corriqueiro e o fato de ele ser africano nos remete ao termo "nganga" ou “ganga”. A palavra é de origem quimbundo (África Centro-Ocidental) e se referia àquelas pessoas que, por intermédio de objetos e rituais, faziam previsões, proteção ou cura. Seria Francisco Gangá um líder religioso/espiritual africano na cidade da Paraíba? 

Outros registros apontam que ele tinha certa liderança e referência entre pessoas escravizadas, incluindo as recém-chegadas da África. Como sabemos disso? Entre 1838 e 1847, Francisco Gangá apareceu como padrinho de seis pessoas batizadas na Freguesia de Nossa Senhora das Neves, cidade da Paraíba. Dentre elas, cinco eram escravizadas, sendo três africanas e uma filha de africana. Apesar de serem casados, apenas uma vez Cosma Corrêa aparece como madrinha, acompanhando seu marido. 

Francisco Gangá não apenas viveu pelas ruas da cidade como trabalhador escravizado, conquistou sua alforria, construiu sólidas redes de solidariedade e ajuda mútua, reforçou sua identidade africana e professou sua fé. Ele conseguiu, junto com Cosma Corrêa, algo raro para pessoas de sua condição: possuíam propriedades, deixando como herança doze “casas de telha”. Ambos devem ter exercido atividades que os permitissem acumular alguma riqueza. Ao registrar o testamento, o casal informou o local de suas casas. Pelo mapa, podemos andar pelas ruas da cidade da Paraíba no século XIX e identificar onde ficavam - aproximadamente - as casas de Francisco Gangá e Cosma Corrêa. De acordo com seu testamento, o casal possuía uma casa na Rua da Palha, outra na Rua do Tambiá, mais uma na Rua da Mangueira, sete na Rua da Lagoa e duas em Jaguaribe.

Ver o mapa e identificar os locais citados no testamento, permite-nos imaginar como essas pessoas vivenciaram as ruas do atual centro histórico da capital da Paraíba e nos desperta a atenção para os sentidos que a elas podem ter sido dados, a exemplo da “Rua de Zumbi”, possível referência ao líder do quilombo dos Palmares. Devemos ressaltar a experiência das pessoas africanas escravizadas, que nos mostra que a luta pela liberdade se deu das mais variadas formas e era cotidiana. O caso de Francisco Gangá e Cosma Corrêa nos abre a possibilidade de pensarmos sobre a vida dessas pessoas na Paraíba que, diante de uma realidade opressora da escravização, buscaram sua liberdade e reafirmaram suas vidas. Aqui se casaram, construíram laços de solidariedade, circularam pelas ruas, participaram de festas, conseguiram suas alforrias, deixaram bens de herança. Viveram e construíram a nossa cidade.

Para saber mais

LIMA, Maria Vitória Barbosa de. Liberdade interditada, liberdade reavida: escravos e libertos na Paraíba escravista (Século XIX). Brasília:FCP, 2013.

GUIMARÃES, Matheus Silveira. Diáspora africana na Paraíba do Norte: trabalho, tráfico e sociabilidade na primeira metade do século XIX. João Pessoa: Editora do CCTA, 2018.

ROCHA, Solange Pereira da. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual. São Paulo, Editora UNESP, 2009.

*Matheus S. Guimarães é Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Professor da Rede Municipal de Ensino de João Pessoa/PB.

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Edição: Carolina Ferreira