Paraíba

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A mídia não pode ser usada para ataques racistas nem violação aos direitos humanos

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"Liberdade de expressão tem limites. Não pode ser usada como liberdade para oprimir grupos vulnerabilizados socialmente". - Foto: Joseane Tembé.
no crime de racismo não é possível aos implicados fazerem acordos de não persecução penal

Por Mabel Dias*

No último domingo, 21 de janeiro, celebramos o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi criada como meio de combater práticas discriminatórias contra as/os praticantes das religiões de matriz africana no Brasil e homenagear a memória da mãe de santo Gildásia dos Santos e Santos, que teve sua casa invadida e seus pertences religiosos destruídos, após a Folha Universal  – jornal impresso da Igreja Universal do Reino de Deus –, publicar uma foto dela com o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, o que incitou os fiéis da Universal a atacar o terreiro da ialorixá. Mãe Gilda, como era conhecida, morreu no ano 2000, vítima de infarto. 

Apesar dos esforços dos movimentos sociais, e do movimento negro e de mulheres negras, em particular, para acabar com as atitudes preconceituosas na sociedade, elas ainda existem e causam diversos casos de violência e perseguições aos religiosos do candomblé, da umbanda e de outras denominações das religiões de matriz africana. E na mídia isso não é diferente. 

No entanto, há legislações que coíbem e determinam punições para esse tipo de atitude racista. Foi o que aconteceu em maio de 2023, quando a Justiça Federal na Paraíba tornou réu o repórter e apresentador de programa policialesco no rádio e TV paraibana, Emerson Machado. A denúncia foi encaminhada pelo Ministério Público Federal na Paraíba (MPF/PB) que acusa Machado por prática de racismo, por meio de discurso de ódio contra a religião de matriz africana. 

Conforme a denúncia do MPF/PB, “o réu teria praticado o crime de forma livre e consciente, com dolo direto, tipificado no artigo 20 da Lei 7.716/1989. O discurso teria sido veiculado por meio do canal de TV na plataforma YouTube, com amplitude de alcance transnacional, durante a cobertura do homicídio de uma jovem de 22 anos, que chocou a sociedade paraibana.”

No dia 17 de janeiro de 2024, mais uma denúncia do MPF/PB envolve o nome de Machado. Seis pessoas, que publicaram falas discriminatórias no perfil dele na plataforma digital Instagram, tornaram-se rés na Justiça Federal. Elas publicaram palavras que atingem a dignidade humana dos indígenas da etnia Warao, oriundos da Venezuela, que migraram e passaram a morar em João Pessoa. Na denúncia, o MPF/PB afirma que elas praticaram o crime de racismo, na modalidade xenofobia.

O perfil de Machado no Instagram é potente disseminador de desinformação. A mais recente envolveu Minotauro, lutador de MMA, que o comunicador deu como morto em uma comunidade no Rio de Janeiro. Ele publicou foto do lutador Diego Braga, que realmente fora assassinado, mas identificou a vítima como Minotauro. 

O Instagram de Machado conta atualmente com um milhão de seguidores, que curtem e compartilham suas postagens. Mas, com sucessivas fake news, agressões e barrigadas, ele comete extraordinário desserviço à comunicação em geral e ao jornalismo em particular. Os seis réus, que comentaram um vídeo, postado por Machado em seu perfil sobre os indígenas Warao, são Luiz Emerson Silva Moreira Franco, Liege Costa de Freitas, Gildásio Marinho Costa, Josefa Pereira Pedrosa, Flávio Estevam de Azevedo e Cristian de Lima Machado que, se condenados, podem ficar presos por 2 a 5 anos, além de terem que pagar multa e indenização pelos danos causados por suas práticas discriminatórias. Eles foram enquadrados na mesma Lei e artigo que Machado no processo iniciado ano passado, a 7.716/1989, artigo 20.

Emerson Machado também pode ser preso por racismo, segundo a denúncia do MPF/PB. ”O Ministério Público Federal pede aplicação de pena privativa de liberdade e multa, além de reparação dos danos sociais e prejuízos causados à coletividade. Para o órgão ministerial, a prática do racismo é inaceitável e, por isso, defende que deve ser combatida em todas as suas formas.”, diz um trecho da ação penal.

Sob a alcunha de Môfi, Machado começou a ter mais visibilidade no policialesco Correio Verdade, exibido pela TV Correio, afiliada à Rede Record, cujos detentores da concessão pública são da Igreja Universal do Reino de Deus, a mesma que relacionou a mãe de santo Gilda a “charlatã e macumbeira”, resultando na destruição de seu terreiro Ilê Asé Abassá, na Bahia. Atualmente, com status de âncora, ele também apresenta – em dupla com Jacilene Marques – um programa de rádio na Correio FM de João Pessoa. O apelido foi criado por ele para se referir a jovens pobres da periferia presos por suposto envolvimento em crimes. 

Segundo a socióloga Hermana Oliveira, em seu artigo Eu sou MÔFI: programas policialescos versus a luta pelo reconhecimento da juventude negra na Paraíba, publicado no blog Lua Nova, a palavra Môfi carrega estigmas contra jovens negros vulneráveis ou de baixa renda de João Pessoa, disseminando medo associado às notícias sobre violência veiculadas pelos programas policialescos de emissoras de rádio e tevê da Paraíba.

Discursos de ódio, desinformação e violações aos direitos humanos, proferidos e praticados sob o manto da liberdade de expressão, são uma constante em programas policialescos. Mesmo assim, a direção do Sistema Correio de Comunicação decidiu por mantê-lo nos quadros da empresa, demitindo profissionais comprometidos com o bom e verdadeiro jornalismo, a exemplo de Sony Lacerda, que apresentava um programa de rádio à noite no qual Môfi tinha participação e costumava interromper desrespeitosamente a fala da colega.

Em outro caso, logo após a mídia paraibana apresentar reportagens sobre denúncias contra o padre Egídio, acusado de desviar recursos do Instituto e Hospital Padre Zé, da capital, Môfi anunciou que desfilaria em público de fio dental, caso o religioso fosse preso. Após a prisão, afinal consumada, não se tem notícia de que tenha ocorrido o tenebroso desfile, mas a ‘gracinha’ rendeu audiência, acessos e engajamento nos espaços de mídia eletrônica e digital que o ‘repórter’ ocupa.

Resta saber agora se a imprensa paraibana ou pelo menos parte dela vai amplificar as denúncias contra Emerson Machado e mais seis pessoas pelo crime de racismo e acompanhar a tramitação dos processos na Justiça Federal. Processo esse que pode ter como desfecho a prisão do comunicador e demais denunciados pelo MPF/PB.

Ressalte-se que no crime de racismo não é possível aos implicados fazerem acordos de não persecução penal, ou seja, admitirem culpa e colaborarem com a Justiça para se livrarem de cadeia. Mas, diferente do que ocorre com pessoas entrevistadas e expostas de forma jocosa e depreciativa por Machado e outros policialescos, que julgam e condenam qualquer desvalido desde a primeira aparição ou abordagem, ele e os demais acusados pelo MPF responderão por racismo em um devido processo legal, com direito ao contraditório e à ampla defesa. 

Além de ser preso, ainda que não de imediato, Môfi pode ser condenado também a pagar multa e um valor elevado de reparação dos danos sociais causados pela infração, considerando os prejuízos causados a toda a coletividade pelo crime que lhe é imputado, conforme denúncia do Ministério Público Federal na Paraíba.

Resta aguardar que se faça justiça nesse caso e que a mídia na Paraíba não passe pano, não seja leniente nem conivente com o racismo. E se conscientize de uma vez por todas que a imprensa não pode servir à propagação de ódio, discriminação, misoginia, LGBTFobia e outros atentados aos direitos humanos. 

Liberdade de expressão tem limites. Não pode ser usada como liberdade para oprimir grupos vulnerabilizados socialmente.

Toda força e apoio aos indígenas Warao e aos praticantes das religiões de matriz africana!!

*Mabel Dias é jornalista, associada ao Coletivo Intervozes, observadora credenciada do Observatório  Paraibano de Jornalismo, coordenadora adjunta do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (FINDAC), mestra em Comunicação pela UFPB e doutoranda em Comunicação pela UFPE. É Autora do livro "A desinformação e a violação aos direitos humanos das mulheres: um estudo de caso do programa Alerta Nacional" (editora Arribaçã).

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.

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Edição: Carolina Ferreira